Rio Grande do Sul

Ditadura Militar

 "Memórias do Esquecimento” resgata época da Ditadura em São Lourenço do Sul

Documentário recém lançado traz 15 depoimentos e consulta a arquivos históricos; confira entrevista com idealizador

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Os nossos golpes, nossas ditaduras, nossos resquícios e ranços autoritários volta e meia reaparecem, em razão de não termos rompido com este passado. Essa é a importância de trazer à tona o tema" - Divulgação

“Estamos vivenciando um momento em que as pessoas simplesmente acreditam naquilo que elas querem acreditar, o que é desolador em todos os sentidos. Há, assim como na época da ditadura, um desmantelamento do estado de bem-estar social e um total esvaziamento do debate na esfera pública sobre questões que envolvam a cidadania e os direitos humanos”, afirma o idealizador do documentário "Memórias do Esquecimento: A efervescência de São Lourenço do Sul nos tempos da Ditadura", o advogado Pedro Henrique Farina Soares. 

Lançado no último domingo (28), o filme resgata a história e marcas deixadas pela ditadura na cidade de São Lourenço do Sul, que fica a 198 km de Porto Alegre. “Como em muitas cidades interioranas, uma parcela da população guarda tabus e silenciamentos, para evitar ficar mal perante aqueles que detêm mais que o poder patrimonial, o próprio poder simbólico dentro da comunidade. Nesse sentido, a efervescência política e cultural durante o período da ditadura civil-militar costuma ser pouco explorada em nosso contexto e, na verdade, até mesmo esquecida. Por isso o nome 'Memórias do Esquecimento', título do livro do jornalista Flávio Tavares”, explica Pedro. 

Financiado pela Lei Aldir Blanc, o projeto foi idealizado pelo advogado e contou com a colaboração da jornalista Gabriela Schmalfuss Borges. Ambos fazem parte do Vozes em Movimento, coletivo que atua em São Lourenço do Sul desde 2015 na produção e divulgação de conteúdo de caráter independente, promovendo também eventos culturais, como cinedebates, rodas de conversa e saraus temáticos. 

De acordo com os idealizadores, o documentário, buscou, dentro de seus limites , estabelecer uma espécie de "comissão da verdade" do pequeno município, localizado às margens da Lagoa dos Patos e cerca de 60km distante de Pelotas. 

Para a realização do documentário, a produção entrevistou quinze pessoas que contribuíram dentro de suas realidades, seja no movimento estudantil, no cenário cultural ou no ambiente político, para fortalecer a cultura e o debate na cidade entre os anos de 60, 70 e 80, período de forte restrição das liberdades individuais e coletivas. Também foram consultados arquivos históricos, como documentos do Arquivo Nacional, jornais da Biblioteca Municipal e livros sobre a história do município, além de fotos e áudios de programas de rádios cedidos pelos entrevistados. 

No dia que o Brasil completa 57 anos do golpe civil-militar de 1964, e na semana em que o novo ministro da Defesa, general Walter Souza Braga Netto, assina Ordem do Dia sobre golpe de 64 e afirma que ele deve ser celebrado, o Brasil de Fato RS conversa com Pedro sobre o documentário e o resgate desse período. “O documentário, para além de um resgate histórico de um período tão difícil e que insiste em nos acompanhar, é também um manifesto pela utopia, para que a gente nunca deixe de continuar caminhando”, frisa. 

Abaixo, a entrevista completa:


"A sociedade está tão fragmentada e alheia as suas próprias vontades que sequer consegue estabelecer um debate plausível sobre qualquer coisa que seja, até mesmo amenidades" / Arquivo Pessoal

Brasil de Fato RS - O que te motivou a abordar o tema? 

Pedro - Este assunto está intrinsecamente ligado à minha formação humana e acadêmica. Fui criado ouvindo histórias do meu pai, Antônio Carlos, sobre como ele e o meu tio Inácio Luiz atuavam naquela época. Histórias de repressão, restrição de ideias, medos, mas também de muitas utopias e trocas culturais. 

Ambos foram censurados em seus discursos como oradores, um na formatura do 2º grau, atual ensino médio, e outro na da graduação em Jornalismo, na Universidade Católica de Pelotas (UCPel). 

Isso me constituiu enquanto ser pensante e político, o que fez que eu tentasse encontrar algumas respostas, e, claro, ter outras várias dúvidas, do que aconteceu naquele período e como ele se constituiu, tanto em nível simbólico como prático. O que culminou, já no final da minha graduação em Direito, na produção do meu TCC que fez uma análise sociológica e jurídica de como a lei de anistia obstaculizou uma justiça de transição efetiva aqui no Brasil. E veja, isso foi feito em 2012, período em que recém estava se começando a Comissão Nacional da Verdade, passados mais de 27 anos da chamada redemocratização. 

Afora outros trabalhos, em início de 2016 conclui um curso desenvolvido pela UNB à distância sobre ditadura e justiça de transição, tendo como atividade final a confecção de um projeto de intervenção que, mesmo com um atraso de cinco anos, é o que conseguimos apresentar agora.

Todas essas situações que narrei permeiam o documentário e fazem parte da sua espinha dorsal.

BdFRS - Ao se abordar a ditadura, os recortes costumam cair sobre as capitais, os grandes centros ou quando a região ganha destaque por algum fato histórico. Que revelações o teu documentário te trouxe sobre esse período na cidade de São Lourenço do Sul? Que marcas ela deixou na cidade?

Pedro - Quando eu e a Gabriela começamos o documentário, tínhamos apenas alguns esboços de histórias e, inclusive, achamos que teríamos dificuldades em conseguir algo mais concreto, principalmente no que diz respeito à repressão. Questões culturais e de movimentos estudantis sabíamos que existiam, agora de repressão, censura e prisões, fomos tomando maior conhecimento conforme o projeto foi sendo construído. 

À medida que íamos mergulhando mais e mais no passado da cidade, por meio dos depoimentos, de livros e de documentos do Serviço Nacional de Informações disponibilizados no Arquivo Nacional, fomos percebendo o quanto São Lourenço do Sul teve personagens que direta ou indiretamente estiveram envolvidos na espiral de acontecimentos que começaram até mesmo antes do golpe de 64. 

Tomamos conhecimento de prisões de agentes políticos filiados ao PTB e, em tese, que fariam parte do chamado Grupo dos Onze de Leonel de Moura Brizola. Um dos presos, inclusive, teria sido torturado e posteriormente enviado para o Hospital Psiquiátrico São Pedro em Porto Alegre.

Constatamos que o delegado Firmino Peres Rodrigues, mencionado na Comissão Nacional da Verdade como chefe do DOPS/RS na década de 70, atuou em São Lourenço do Sul entre outubro de 1960 e junho de 1964. 

E também, talvez o fato que tenha uma maior aura de mistério, que é o caso do operário Juarez Rosa da Silva, que foi encontrado por um padre e um pastor amarrado em uma cama do hospital da comunidade de São João da Reserva, interior da cidade, e bastante machucado. O caso teve repercussão nacional, tendo sido veiculado em vários jornais (inclusive o Jornal Nacional), o que gerou processos e até mesmo CPI na Assembleia Legislativa do estado, sem qualquer resultado efetivo, contudo. 

Por fim, é importante mencionar os casos de segregação racial que existiam nos clubes sociais da cidade, que proibia a entrada de negros em determinados locais e estabelecia dias para o que chamavam de “Bailes de Brancos” e “Bailes de Morenos”.

Aqueles que estiveram inseridos nesses momentos levam e levarão essas marcas para sempre. Porém, a meu ver, a maior marca desse período em São Lourenço é exatamente o silêncio, a ausência de relatos sobre. E é essa a intenção do nosso coletivo, dar voz àquilo que não tinha até então.

BdFRS - Que memórias do esquecimento são essas?

Pedro - De acordo com a última pesquisa do IBGE feita no ano de 2010, São Lourenço do Sul possui pouco mais de 43 mil habitantes. Como em muitas cidades interioranas, uma parcela da população guarda tabus e silenciamentos, para evitar ficar mal perante aqueles que detêm mais que o poder patrimonial, o próprio poder simbólico dentro da comunidade. Nesse sentido, a efervescência política e cultural durante o período da ditadura civil-militar costuma ser pouco explorada em nosso contexto e, na verdade, até mesmo esquecida. Por isso o nome “Memórias do Esquecimento”, título do livro do jornalista Flávio Tavares.

Aqui, assim como em grandes centros do país, tivemos prisões políticas, censuras, repressão, e também muita movimentação em nível estudantil, de quebra de costumes e de construção de utopias de um mundo mais justo e igualitário. A ideia de resgatar essas histórias foi tentar recuperar aquilo que nos constituiu e ainda nos constitui enquanto comunidade e seres políticos que somos, seja no sentido de acobertar assuntos “polêmicos” ou no sentido de retomarmos aquele ímpeto utópico que se fazia tão presente, principalmente nos jovens daquela época.

BdFRS - Neste 31 de março é lembrado o início da ditadura no país. No momento em que estamos vivendo com simpatizantes desse período no poder, qual a importância e a relevância de trazer o tema à tona? 

Pedro -  A relevância está em expor o que aconteceu naquele período, principalmente em um contexto dessa cidade interiorana que sempre negou seu passado repressivo. A ideia que eu e a Gabriela tivemos com a produção e divulgação do documentário foi fazer uma espécie de “comissão da verdade”, dentro das nossas possibilidades, de uma maneira acessível. Romper com o silêncio e com um passado autoritário, que perfaz a estrutura formal e material desse país até mesmo para antes de 64, requer formas de alcançar o máximo possível de público que, muitas das vezes, sequer sabe ou tem interesse em saber o que é ditadura, democracia, etc. São pessoas que estão preocupadas única e exclusivamente em sobreviver. 

O fato de o país ter elegido um presidente que exalta a tortura, comemora o golpe, faz troça com a morte de mais de 300 mil pessoas em razão da pandemia, é paradigmático. Os nossos golpes, nossas ditaduras, nossos resquícios e ranços autoritários volta e meia reaparecem, em razão de não termos rompido com este passado. Essa é a importância de trazer à tona o tema.

BdFRS - Como analisa o momento que estamos vivendo?

Pedro - Infelizmente, estamos vivenciando um momento em que as pessoas simplesmente acreditam naquilo que elas querem acreditar, o que é desolador em todos os sentidos. Há, assim como na época da ditadura, um desmantelamento do estado de bem-estar social e um total esvaziamento do debate na esfera pública sobre questões que envolvam a cidadania e os direitos humanos. A sociedade está tão fragmentada e alheia às suas próprias vontades que sequer consegue estabelecer um debate plausível sobre qualquer coisa que seja, até mesmo amenidades. 

O que eu e a Gabriela notamos é que não há mais esperança de que se consiga mudar as coisas. Isso é algo que norteia o documentário. Nossos entrevistados mencionaram, muitas vezes, que eles tinham muita esperança de mudar o mundo. Por mais que atualmente estejamos achando que não há uma luz no final do túnel, pensamos que sempre há. E o documentário, para além de um resgate histórico de um período tão difícil e que insiste em nos acompanhar, é também um manifesto pela utopia, para que a gente nunca deixe de continuar caminhando. 

Assista abaixo ao documentário completo:


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Edição: Marcelo Ferreira