RIO DE JANEIRO

"Só morreu porque era preto", diz mãe de filho morto em operação policial na pandemia

Rogerio da Silveira é uma das 193 vítimas de operações da polícia desde março de 2020 na região metropolitana do RJ

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |

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Rogerio cursava Gastronomia e havia acabado de criar uma hamburgueria em Niterói (RJ) - Arquivo pessoal

O cardápio do almoço era bife de fígado com batatas, comida preferida de Rogerio da Silveira Junior, segundo conta sua mãe, Catarina Ribeiro da Silveira. Mesmo assim, naquela quarta-feira, dia 6 de maio de 2020, o rapaz saiu de casa sem comer, pouco antes de sentar à mesa com a família. Ele havia recebido uma ligação de seu primo Júlio e foi ao seu encontro.

Essas são as últimas lembranças de Catarina sobre o filho caçula. Rogerio, que havia acabado de completar 21 anos, não voltou mais para casa.

Tarde da noite, horas depois da saída repentina do filho, Catarina, o marido e a filha mais velha descobriram através de uma postagem nas redes sociais de Júlio que Rogerio havia sido morto durante uma operação policial na comunidade do Danon, em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense, a 47,5 quilômetros de distância da casa da família, localizada na Engenhoca, zona periférica de Niterói, na região metropolitana do Rio de Janeiro.

Em choque com a notícia, a família procurou por informações sobre Rogerio. Encontram o rapaz já morto e sendo descrito como um “marginal, não identificado, localizado no local da operação, com uma pistola 9mm e um rádio transmissor”, segundo postagem oficial na página do Facebook do 20º Batalhão de Polícia Militar do Rio de Janeiro (PMERJ). 

A versão da polícia não condiz com elementos apontados no laudo pericial da morte do rapaz, que indicam que seu corpo pode ter sido alvejado com dois tiros enquanto estava ajoelhado com as mãos para cima. Além disso, Rogerio foi diagnosticado com artrite reumatoide, ainda quando criança. A doença causou deformações e intensas dores na sua mão direita, o que o impossibilitaria de atirar com uma pistola. 

A descrição utilizada para tentar justificar sua morte também não se relaciona com o perfil de Rogerio. O rapaz cursava Gastronomia, na Universidade Estácio de Sá, e havia acabado de criar uma hamburgueria, que entregava por delivery em alguns bairros de Niterói. O caso está em fase de investigação. 

“Eu falava para ele: ‘você é preto e pobre. Preto e pobre tem que mostrar o tempo todo que é trabalhador’. Então, eu sempre dizia para ele sair com documento. Eu repeti isso para ele a vida toda, mas mesmo assim não adiantou. No dia da sua morte, ele estava com documento e foi morto como se fosse um desconhecido”, conta a mãe, Catarina Ribeiro da Silveira, de 49 anos, em entrevista ao Brasil de Fato, ainda com dificuldade de conjugar no passado os verbos que dizem respeito ao filho.

Apesar das características particulares, o caso de Rogerio está longe de ser isolado. Há um padrão que se repete nos registros de mortes após operações policiais no Rio principalmente percebido pela não identificação dos corpos e a chegada das vítimas ao hospital sem vida. 

Vale lembrar ainda que em momento algum da pandemia as operações policiais deixaram de acontecer nas favelas e periferias do Rio de Janeiro, conforme noticiado pelo Brasil de Fato.

Somente na região metropolitana, foram 337 ações registradas desde o início das medidas de isolamento social, em março de 2020, até fevereiro deste ano, segundo levantamento do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI-UFF).

:: Leia também: Segunda onda: aumento da covid acompanha crescimento de operações em favelas do RJ ::

No total, foram 193 mortos e 132 feridos oficialmente registrados após as ações na região metropolitana do Rio desde o início da pandemia no país, em março de 2020, até fevereiro deste ano.

Os dois primeiros meses de 2021 registraram 71 vítimas fatais, 33 em janeiro e 38 em feveireiro. Os números representam mais de uma pessoa morta por dia. Pessoas, famílias e histórias como as de Rogerio. 

Leia a entrevista na íntegra

Brasil de Fato: Como foi o dia da morte de Rogerio?

Catarina: Ele acordou muito bem, na quarta-feira, dia 6 de maio do ano passado. Niterói estava em lockdown. Estávamos em casa, a família, arrumando a casa, fazendo almoço. O telefone tocou, em seguida, ele saiu e disse que já voltava. Saiu sem almoçar sua comida preferida, que era bife de fígado com batatas.

Durante o dia nós ligamos, mandamos mensagem, mas não conseguimos falar com ele. À noite, por volta das 22h, eu senti um negócio estranho, escutei uns barulhos, tive uma sensação. Por incrível que pareça foi o horário da morte dele.

Umas horas depois, eu vi o celular e tinha recebido umas mensagens das minhas sobrinhas perguntando sobre Rogerio, dizendo que meu sobrinho neto, Lucas, tinha feito uma postagem sobre ele.

A publicação era como se ele estivesse se despedindo do meu filho e apontando a culpa da polícia.

Começamos a procurar o Rogerio. Então, descobrimos que eles tinham ido a Nova Iguaçu [na Baixada Fluminense], na comunidade do Danon, para uma festa. Era uma festa na casa da mãe de Lucas.

E como ele foi morto?

Aconteceu uma operação policial no Danon. Segundo a PM, eles receberam uma denúncia de que havia uma briga entre facções do tráfico no local. Quando começa a operação é uma correria, vai cada um para um lado. Depois Rogerio é encontrado morto.

Na versão da polícia, eles falam a mesma história de sempre, de que houve troca de tiros e, quando foram revistar o local, encontraram um ferido, um “marginal, desconhecido, com uma pistola e um rádio”. Esse “marginal” era meu filho. 

Meu filho não ia até a padaria sem documento. Ele estava com documento, a carteira de habilitação e a carteirinha da faculdade. Não era um desconhecido. 


O rapaz foi descrito pela PM como um “marginal, não identificado, localizado no local da operação, com uma pistola 9mm e um rádio transmissor” / Reprodução/Facebook

E o laudo pericial confirma essa versão?

Não, mas tudo leva a crer, pelas posições de entradas e saídas dos projéteis, que ele estava com as mãos para cima e de joelhos quando foi assassinado. Também que tiraram documentação dele e implantaram essa arma para “justificar” sua morte, se é que matar alguém tem justificativa.

Também temos comprovação de que ele chegou morto ao hospital e não ferido, como diz a PM. Eu tenho foto dele morto no local do crime.

Ele foi morto por ser negro?

Se fosse um branquinho, não aconteceria isso. Mas meu filho era preto, então ele não pode nem ser só alguém que estava de passagem. Isso vem independente até da condição financeira.

Rogerio já foi parado pela polícia indo trabalhar. Eu moro em um bairro cercado por comunidades em Niterói. É como se fosse uma bacia cercada de favelas, então sempre tive medo por ele.

Você pensava que ele passaria por situações de risco de vida pela cor da sua pele mesmo onde vocês moram? 

Sim, a todo tempo. Eu falava para ele: “você é preto e pobre. Preto e pobre tem que mostrar o tempo todo que é trabalhador”.

Eu sempre dizia para ele sair com documento. Ao invés de a gente debater esse discurso e não aceitar, a gente compra porque a gente quer se preservar. A gente quer sobreviver. A gente se adequa ao sistema.

Eu repeti isso para ele a vida toda, mas mesmo assim não adiantou. No dia da sua morte, ele estava com documento.

A polícia afirma que Rogerio foi encontrado com uma pistola em uma das mãos, além de um rádio transmissor. Qual a sua avaliação sobre essa versão do caso?

Rogerio tinha alguns problemas de saúde desde de criança. Ele sempre foi uma criança muito ativa, falava muito, gesticulava muito, era inquieto demais, como eu, mas sofria com a sua condição.

Ele foi diagnosticado aos nove anos com artrite reumatóide. É uma doença autoimune em que o organismo ataca as articulações. Ele tomou imunossupressores até morrer. Só com o medicamento ele ficava sem dor, sem inflação e sem deformidade nas articulações, mas também ficou muito frágil. Uma vez ele teve que ficar internado no hospital por conta de uma simples dor de garganta.

Uma das deformidades causada pela doença se tornou persistente na mão direita. Ele tinha uma cirurgia marcada, inclusive, antes de falecer, para melhorar a condição da mão direita dele. Ele, definitivamente, não poderia atirar como a PM o acusou.

Como era a relação de vocês?

A vida com Rogério sempre foi de muitas idas ao médico, remédio, hospital, indo e voltando. Isso aproximou muito a gente. Andávamos sempre juntos.

Ele dormia comigo. Esperava o pai sair para trabalhar para ir para a minha cama. A gente tinha uma troca muito grande. Ele gostava de coisas que eu gostava, como o carnaval. 

E como ele escolheu estudar culinária?

Ele gostava das coisas artesanais, o que ele podia fazer por conta própria. Ele pescava, aprendeu a tocar instrumentos de percussão. Inclusive já desfilou no carnaval.

Ele fez inglês, espanhol, estudou na primeira escola pública bilíngue do país, a Escola Brasil-França, então arranhava também um francês.

Fez intercâmbio na França. Ele fez aula de vela, capoeira, futebol de salão, jiu-jitsu e ganhou várias medalhas.

Ele tinha uma vida muito ativa. Aí entrou também a comida. Ele via o pai fazer e começou a se interessar. Lia, pesquisava, procurava na internet e acabou escolhendo como profissão.

Por ele ter esse problema de saúde, eu sempre o incentivei a fazer muita coisa. Queria que ele se ocupasse. E ele fez muita coisa, tudo o que quis.

Antes, aos trancos e barrancos, e depois porque a gente teve uma vida de mais oportunidades.


Catarina: “Eu falava para ele: ‘você é preto e pobre. Preto e pobre tem que mostrar o tempo todo que é trabalhador’” / Arquivo Pessoal

Como foi essa vida de mais oportunidades?

Sou bibliotecária da Universidade Federal Fluminense [UFF], concursada pública.

Fiz graduação em Biblioteconomia, depois fiz permanência de vínculo em Ciências Sociais e iniciei [o curso] assim que terminei a primeira graduação.

Em seguida, eu passei no mestrado em Ciência da Informação e para o concurso para bibliotecária da UFF. Mas antes disso era prestadora de serviço, também como bibliotecária.

Teve uma mudança muito grande na nossa vida quando passei a ser funcionária pública. Mudança de água para o vinho.

Fui a primeira pessoa a fazer uma graduação na minha família. Minha filha foi a segunda, formada em odontologia, meu filho seria o terceiro.

Sempre incentivei muito meus filhos a estudarem. A gente viu na educação uma expectativa de mudança. 

Em que Rogerio trabalhava antes de falecer?

Ele fazia curso profissionalizante em Gastronomia, na Estácio, no Rio. Trabalhou em dois restaurantes em Niterói. E, antes de falecer, ele abriu uma hamburgueria que entregava por delivery.

Ele parou de trabalhar durante a pandemia porque era grupo de risco, a partir de março de 2020.

Como está sendo lidar com tudo isso?

Eu estou buscando ajuda, faço terapia toda semana. Também acompanhamento com psiquiatra, estou fazendo uso de medicação.

Eu não durmo a noite toda. Passo a noite em claro. Tem dias que eu não me levanto da cama. Não consigo me arrumar mais. A vida perdeu o sentido.

O apoio ajuda, mas não diminui a dor. Eu consigo hoje falar sem ficar chorando o tempo inteiro, mas tem dias em que desabo.

O que não sai da minha cabeça é: o que aconteceu naquele momento? Será que meu filho sentiu o que? Ele sofreu? Ele pediu pelo amor de Deus para não o matarem? Mostrou seu documento?

Edição: Poliana Dallabrida