Rio Grande do Sul

Memória

Livro paradidático resgata histórias de lutas pela terra no Brasil

A publicação é um esforço coletivo da Rede de Pesquisadores/as da Comissão Camponesa da Verdade

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Livro "Histórias de lutas pela terra no Brasil (1960-1980)" foi lançado no dia 24 de março - Divulgação

No dia 2 de abril de 1962 o líder camponês João Pedro Teixeira foi assassinado. O crime tinha o objetivo de desmobilizar o movimento pela reforma agrária na região nordeste e intimidar as Ligas Camponesas, das quais ele era um dos mais importantes líderes, na década de 1960. A viúva Elizabeth Teixeira continuou sua luta. Ela organizou as lideranças camponesas no sertão pernambucano. Com o golpe de 1964, precisou fugir e só reapareceu em 1981 para as filmagens de Cabra Marcado para Morrer.

Esta e outras tantas histórias apagadas da memória do povo brasileiro fazem parte do livro paradidático "Histórias de lutas pela terra no Brasil (1960-1980)." Lançado no dia 24 de março, o livro pode ser baixado gratuitamente no site da Editora Oikos. O debate de lançamento foi realizado em parceria com o História da Ditadura e pode ser visualizado no Youtube.

O livro é produto do Projeto de Pesquisa "Mobilizações e movimentos agrários, repressão e resistência do pré-64 à ditadura civil-militar: as trajetórias do Master no RS e das Ligas Camponesas em PE”, financiado pela CAPES por meio do edital Memórias Brasileiras – Conflitos Sociais.

Organizado pela historiadora Alessandra Gasparotto e pelo sociólogo Fabrício Teló, o livro conta com diversas autoras e autores: Alessandra Gasparotto (UFPel), Clifford A. Welch (UNIFESP), Eduardo Araújo (UFPB), Fabrício Teló (Consultor IICA), Juliana Amoretti (Analista C&T CAPES), Leonilde Sérvolo de Medeiros (UFRRJ), Natiele Gonçalves Mesquita (Rede Estadual RS/Rede Municipal Pelotas), Pablo Francisco de Andrade Porfírio (UFPE), Tiago Perinazzo Cassol (Rede Municipal Rio Grande) e do ilustrador Alessandro Barcelos Flores (UFPel).

Livro apresenta linguagem acessível para a educação básica


A historiadora Alessandra Gasparotto é uma das organizadoras do livro / Divulgação

Segundo a professora do Departamento de História da UFPel (Universidade Federal de Pelotas) e uma das organizadoras e autoras do livro Alessandra Gasparotto, o livro apresenta um panorama das disputas pela terra no Brasil nas últimas décadas e as experiências de resistência das populações do campo, que muitas vezes são esquecidas e estão ausentes das salas de aula da Educação Básica.

“Buscamos utilizar uma linguagem acessível e direcionada a estudantes da Educação Básica, esperamos que ele contribua para que essas histórias e memórias sejam contempladas nos currículos e possam tornar a escola um espaço potente de discussão acerca da questão agrária, que é sem dúvida um dos principais fatores da desigualdade e da violência que marcam a nossa sociedade”, destaca ela.

Também organizador e autor do livro, o Consultor do IICA (Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura) Fabrício Teló afirma que com o golpe de 1964, as populações rurais que estavam protagonizando as lutas por uma distribuição mais democrática da terra no Brasil sofreram forte repressão e foram obrigadas a passar duas longas décadas sob um regime autoritário. Porém, segundo ele, jamais esqueceram das memórias de suas lutas, perseveraram e foram atores-chave no processo de redemocratização nos anos 1980.

“Atualmente, estamos passando por um novo período de arrefecimento das lutas. Daí a importância de valorizarmos as memórias das lutas do passado, para que sirvam de inspiração para os desafios do presente e de combustível para as do futuro. Nosso livro busca contribuir para a valorização dessas memórias e para a defesa da democracia", destaca.


Fabrício Teló também é organizador e autor do livro / Divulgação

O que sabemos sobre quilombos e quilombolas?

“O que aprendemos nas escolas e nas universidades sobre quilombos e quilombolas? O que sabemos sobre as lutas por direitos no campo brasileiro? Da colonização até os dias atuais existem semelhanças? Justiça de Transição (Direito à memória, verdade e justiça) e a questão racial - campesina são temas das nossas preocupações atuais no Brasil? O que sabemos sobre nós mesmos enquanto indivíduos e sociedade é capaz de auxiliar a compreender o momento que estamos atravessando? Como motivar crianças, adolescentes, jovens e público em geral a conhecer mais sobre nós mesmos em meio a tanta (des)informação? 

Estes são questionamentos colocados pelo professor do Curso de Direito da UFPB (Universidade Federal da Paraíba) Eduardo Fernandes de Araújo. Ele escreveu o capítulo sobre quilombos e quilombolas, junto com Givânia Maria da Silva, da Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas).

“Com o uso de referências acessíveis, linguagem popular, fatos históricos e políticos bem delimitados, a obra demonstra que sabemos muito pouco sobre as nossas (re)existências, principalmente, devido ao contínuo apagamento das nossas referências de luta na história do Brasil, tanto quanto, pela omissão/ação do Estado em perpetuar uma espécie de ‘transição permanentemente e propositalmente inacabada’ que está enraizada na educação e na cultura.”

Segundo Eduardo, essa é a importância desta obra paradidática, nos colocar as perguntas certas, apontar as possibilidades de caminhos para superação do atual momento, acreditar nos futuros que são feitos agora. “O Meu Tempo é Agora, definiu Mãe Stella de Óxossi sobre a aprendizagem dentro dos Candomblés, frase que deu título ao seu livro mais difundido nas redes sociais. A Yá está certa, o tempo que temos é o agora, mas para entendê-lo precisamos nos conhecer”, lembra.


O professor Eduardo Fernandes de Araújo escreveu o capítulo sobre quilombos e quilombolas / Divulgação

Para não esquecer as lutas, as resistências

O professor da UNB (Universidade de Brasília) Sérgio Sauer recorda que a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), no final de 2011, cumpriu recomendações das Nações Unidas, renovou investigações e estudos sobre a história recente, marcada por autoritarismo e violações de direitos.

Segundo ele, a Comissão Camponesa da Verdade, uma rede de pesquisadores/as e lideranças de movimentos e organizações, pesquisou e organizou um dossiê com centenas de casos de violência no campo, inclusive com vários projetos de pesquisa e atuação em comissões estaduais da verdade.

“Os estudos e reflexões da Comissão Camponesa da Verdade, a partir de 2013, são parte de um esforço por presentificar e não esquecer as lutas, resistências, violações e violências no campo brasileiro. As (re)construções das memórias camponesas, portanto, abriram possibilidades de dar visibilidade pública às violações cometidas pelo Estado e seus agentes contra homens e mulheres do campo, especialmente nos anos da ditadura militar.”

Com atuação nos Programas de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural (PPG-Mader) e Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais (MESPT/CDS), Sauer destaca que os esforços de (re)construção da memória – tanto no âmbito da Comissão Nacional da Verdade como de pesquisas sobre o Master no RS e as Ligas Camponesas no Nordeste – não objetivaram apenas contrapor à história oficial e à pretensa isenção do Estado.


O professor da UNB Sérgio Sauer destaca a importância da Comissão Camponesa da Verdade / Divulgação

“As pesquisas não objetivam descrever o passado de violações, registrando como ‘de fato ocorreram’ ou restabelecendo ‘a verdade dos fatos’. A presentificação das memórias – além de historicizar a verdade no debate nacional, o que não se reduz a um registro formal na história oficial – é parte de construção identitária, portanto, parte fundante do ser sujeito histórico. Ser sujeito do campo é ter as memórias, inclusive as de violações e violências, reconhecidas e não esquecidas”, destaca.

Edição: Marcelo Ferreira