Rio Grande do Sul

Linha de frente

“Não deixe um familiar adoecer para entrar em contato com a realidade”, diz psicóloga

Psicólogas relatam ao Brasil de Fato RS os desafios do cuidado com a saúde mental em meio a dor, medo e culpa

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Entre os recursos usados para aproximar pacientes de familiares estão as videochamadas - Rafaela Bernardes/Agir

O Rio Grande do Sul é o quarto estado brasileiro com maior número de vítimas fatais por conta da covid-19. Após um ano do primeiro registro, ocorrido no dia 24 de março de 2020, mais de 17 mil vidas já foram interrompidas. Por trás da crueza dos números, dor, angústia, medo, impotência e até mesmo culpa são sentimentos que marcam a vida das pessoas que perderam seus entes queridos.

O luto deixado pela doença, segundo especialistas, pode causar uma ruptura enorme na saúde mental. “Não há lugar na mente para tanta dor, não há palavra que consiga dar conta de significar, de dar algum sentido imediato”, ressalta a psicanalista vincular, Karla Nyland. 

Responsáveis pelo processo de escuta e acolhimento, profissionais da psicologia são peças-chave para trazer acalento para as perdas deixadas pela pandemia, seja na linha de frente ou em atendimentos remotos. Mesmo treinados para realizar a escuta e usar seus sentimentos como um elemento de diagnóstico, também podem ser afetados pelas situações difíceis por eles enfrentadas.

“Ser afetado por elas também nos torna humanos. O relevante é termos espaço para lidar com estes sentimentos (dentro e fora do hospital) e transformá-los em ferramentas do nosso trabalho para que eles não nos paralisem”, sinaliza a psicóloga do CTI do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Elis de Pellegrin Rossi. 
 
Atendendo pacientes que perderam familiar por covid-19 desde agosto 2020, Karla Nyland, que trabalhou muitos anos com pessoas com HIV/Aids, aponta que a angústia e o medo estão presentes na vida de todos neste momento. Em relação aos pacientes que perderam algum familiar, ou uma ou mais pessoas queridas, ela diz que a dor é perceptível até através da voz.

“Elas ‘sentiram na pele’ a potência da pandemia e vivenciam a desestrutura familiar decorrente da perda. É uma ruptura traumática na vida, principalmente quando ocorrem mais perdas familiares no mesmo momento ou num curto espaço de tempo”, diz. 

Segundo Karla, todos os pacientes nesta condição de perda falam sobre a última vez que viram a pessoa amada, sobre o que conversaram, e choram pelo que deveriam ter dito. Nestas escutas, a psicanalista comenta que sempre o medo de não dar conta da dor estava presente.

“Não há lugar na mente para tanta dor, não há palavra que consiga dar conta de significar, de dar algum sentido imediato. Ser acolhido na dor, poder falar, chorar, dizer dos sentimentos são formas de tentar elaborar este luto que precisa de tempo e que acontece dentro dos limites possíveis para cada um”, afirma. 


"O desejo de abraçar seu familiar é enorme, assim como o medo de nunca mais poder tocar neste amor, caso venha a falecer. Há uma ruptura enorme na saúde mental”, destaca Karla / Arquivo Pessoal

Além da dor, a culpa 

Para além de todos os sentimentos que envolvem o luto, outro sentimento vivenciado neste momento é a culpa, comenta a psicanalista. Segundo ela, alguns pacientes também se infectaram e a partir daí vem a tona o sentimento. “Aí soma-se um sentimento de culpa, uma ideia que poderia ter cuidado mais, que teria sido melhor não ter ido trabalhar utilizando o transporte público, que não deveria ter ido ao supermercado, como se pudesse ter feito diferente. É a culpa do sobrevivente, de quem passou por situação traumática e ‘se salvou’”, detalha. 

Em alguns casos o sentimento é tão intenso que as pessoas podem desenvolver um quadro de sintomas como cefaleia, perturbação do sono, ansiedade. “A culpa e o trauma pesam, favorecendo o aparecimento de uma série de sintomas (físicos, psíquicos e comportamentais)”, complementa Karla.

Ela acrescenta ainda que, às vezes a culpa é real. "“Pessoas que negaram a intensidade e potência do vírus, se colocaram em situação de contaminação aglomerando, fazendo festa, não se protegeram e levaram o vírus para dentro de casa, contaminaram familiares e quando algum morre, a culpa fica enorme pois é dano irreparável. Só é possível aceitar”, diz.

Para amenizar, profissionais usam dispositivos para aproximar familiares e internados

Trabalhando na linha de frente do combate à pandemia, a psicóloga Elis de Pellegrin Rossi conta que além da readaptação da assistência já prestada para pacientes, famílias e equipe, os profissionais tiveram que realocar recursos, criar novos protocolos e construir novas frentes de trabalho. “A rotina é pesada e de muita transformação a todo o momento com o prolongamento da situação”, salienta.

Conforme descreve Elis, dentro da CTI há sempre presente a política de humanização. Ela conta que devido ao agravamento da pandemia, mudanças tiveram que ser postas em prática “Tínhamos três visitas por dia, sendo que alguns pacientes recebiam, dependendo da sua característica, o que a gente chama de visita estendida onde a família podia ficar no leito de UTI com o paciente 24 horas. Passamos desse estado de visita, para absolutamente zero. Isso teve um impacto muito grande, não só para os pacientes e familiares, mas também para nós enquanto equipe, porque entendemos que o familiar faz parte do tratamento do paciente”, explica. 

Para fazer a aproximação dos familiares com os pacientes, as equipes começaram a fazer teleatendimentos, videochamadas, que de acordo com Elis abriram um leque de possibilidades. “Conseguimos acessar um maior número de familiares que não vêm ao hospital. Fomos desenvolvendo videochamadas. Quando o paciente tem condições, proporcionamos que eles possam ver seus familiares através de videochamadas”, expõe. 

As videochamadas também são feitas em momentos mais críticos, como quando o paciente tem que ser intubado. “Fazemos uma visita virtual antes dele ser intubado para que possa se despedir antes de ser sedado”, complementa. 

Além desses recursos, fotos de familiares foram colocados nos leitos dos pacientes. Assim como a equipe, junto com o crachá funcional, elaborou o super crachá, em tamanho maior, para que os pacientes e familiares pudessem reconhecer os profissionais, já que estes usam máscaras. 

“Nunca desistimos das visitas presenciais, trabalhamos junto com o controle de infecção do hospital para que pudéssemos possibilitar, em alguns casos, as visitas presenciais. Esses pacientes recebem visitas, com alguns critérios: pacientes de longa internação, pacientes com risco altíssimo de óbito, pacientes que estão em pré-intubação. Todos esses são critérios que usamos para que o paciente possa estar junto com o seu familiar”, destaca Elis. 


"Entenda que hoje pode ser aquele caso na TV, mas amanhã pode ser contigo", alerta Elis / Arquivo Pessoal

Exaustão refletida 

“Chegamos a um ponto extremamente crítico do trabalho e desgaste das equipes”, desabafa Elis. Ela conta que na UTI do Clínicas há 100 leitos e uma equipe de 12 psicólogos que trabalham dentro da CTI. “Temos uma demanda absurda de trabalho. Muitas vezes não conseguimos fazer essa aproximação (familiares e pacientes). Os relatos que tu está ouvindo de desgaste das equipes, sentimentos de frustração e derrota por não conseguir prestar para o paciente o que realmente gostaríamos, eles são muito reais”, destaca a psicóloga.

De acordo com Elis, além do trabalho feito com os familiares e pacientes, os psicólogos também trabalham com as equipes, juntamente com a psicologia do trabalho. “Eu como psicóloga do CTI trabalho em parceria com as psicólogas do trabalho e vamos fazendo um diagnóstico desse sofrimento dos profissionais. E a partir disso criamos um grupo onde se usa dispositivos para poder auxiliar esse processo, porque tem sido de fato muito cansativo, frustrante. Chegamos ao ponto de criarmos um grupo de decisões difíceis onde se trabalha quem vai receber tratamento de UTI ou não, quem vai para o respirador ou não”, comenta. 

Entre as decisões difíceis, como já foi apontados por outros profissionais que estão na linha de frente, está a decisão sobre a vida dos pacientes. Um fato, que segundo Elis, infelizmente, é realidade. “Estamos criando, desenvolvendo um grupo multiprofissional, com médicos intensivistas, médicos paliativistas, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais que trabalham junto às equipes para fazer a discussão desses casos. Porque é uma decisão muito injusta, e não deve ser colocada em uma pessoa só. Isso não deixa essa decisão fácil, ela só ameniza a responsabilidade de quem está fazendo isso”, pondera. “Quando estamos lá na unidade, na linha de frente, é exatamente o que sentimos, é muito concreto, é muito real quando olhamos para as unidades e vemos os monitores se apagando”, complementa. 

Despedida sem contato 

Um dos momentos mais complexos é quando acontece a despedida virtual antes da intubação. Neste momento o desespero, o medo, a dor e ao mesmo tempo a esperança estão presentes de forma intensa, descreve a psicanalista Karla. 

“Um paciente me ligou tarde da noite, a mãe foi intubada e ele teve a certeza de estar se despedindo dela, naquele momento. Ele precisava de escuta e acolhimento, só queria chorar. Ele estava com covid-19, pegou da mãe ao cuidar dela, sabia que se ela não resistisse até ele se curar, não poderia se despedir dela, e sem mais parentes por perto não tinha muito com quem contar. A mãe faleceu oito dias depois, e ele já estava liberado. Foi muita angústia, para além da ideia da morte”, relata. 

De acordo com ela, as pessoas enlutadas precisam de esperança, sem fugir à realidade, de colo e abraço. “É difícil também para o terapeuta, sabemos tanto quanto o paciente do alto risco quando alguém é intubado. O desejo de abraçar seu familiar é enorme, assim como o medo de nunca mais poder tocar neste amor, sentir o calor, a pele, o cheiro caso venha a falecer. Há uma ruptura enorme na saúde mental”, destaca.

O luto leva muito tempo para ser elaborado, e neste caso é agravado pois a despedida se dá sem ver seu ente querido, sem tempo de velar e de se despedir, aponta. “Nesta gravidade estão centenas de bebês e crianças órfãs, algumas que perderam mãe no parto para a covid-19”. 

Apoio a gestantes com covid-19

O caso de gestantes contaminadas, assim como o aumento de pessoas jovens que estão indo parar nas UTIs, tem aumentado, fazendo com que pesquisadores de Washigton identificassem maior risco de hospitalização e taxa de mortalidade em pacientes grávidas. Até o ano passado o Brasil era o país com maior número de mortes gestantes.  

A psicóloga Elis diz que realmente tem tido um número bem considerável de gestantes contaminadas. Ela destaca que a relação com as gestantes há um elemento muito forte de proteção ao bebê. Em muitos dos casos o bebê acaba nascendo durante essa internação para preserva a mãe, porque a gestação também causa um impacto no corpo da mulher e acaba gerando mais insuficiência respiratória, explica Elis. 

“O que a gente escuta dessas mulheres é um senso de proteção, elas querem a todo custo que os bebês fiquem bem, antes delas. E nós temos feito um trabalho muito bonito com as nossas colegas psicólogas da unidade neonatal, um processo de aproximação com essas mães quando possível. Tivemos casos bonitos e de sucesso com mães que conseguiram sobreviver e os bebês também. Fazemos vídeos chamadas da unidade neonatal para a mãe que está na unidade covid pudesse ver seu bebê. Promovemos visita do pai para que ele também pudesse fazer esse vínculo com a criança. Tem sido um papel muito importante”, detalha.      

Mensagem para quem segue ignorando a gravidade do momento

“Estamos num momento de total descontrole da pandemia e, mais do que nunca, cada um deve tomar para si mesmo a responsabilidade sobre a sua saúde e a do outro, usar máscara, manter a distância física adequada, higiene das mãos é fundamental e pressionar pela vacinação em massa. A vida só é possível quando compreendermos que saúde, educação e economia andam juntas”, conclui Karla.

"Não deixe um familiar seu adoecer para entrar em contato com a realidade atual. Estamos vendo famílias sendo dizimadas, conversamos com famílias que perderam tios, avós primos, filhos. Entenda que hoje pode ser aquele caso na TV, mas amanhã pode ser contigo. Use de sua compaixão e senso de cidadania, estamos todos no mesmo barco”, finaliza Elis. 


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Edição: Marcelo Ferreira