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A gente precisa parar. Não tem jeito

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Enquanto isso, a bola segue rolando num espetáculo fúnebre, como se nada estivesse acontecendo - Marcelo Cortes
Não dá mais pra seguir com os campeonatos estaduais enquanto a pandemia estiver fora de controle

Certa vez, numa conversa mais informal com minha psicóloga após mais uma sessão, começamos a falar sobre a situação atual do país, sobre a pandemia de covid-19 e vários outros problemas.

Ela dizia que não entende como o povo vinha aceitando tantas coisas passivamente e falava até de uma certa conivência com os atos praticados por quem deveria governar para todos nesse nosso Brasil.

Eu, com toda a sinceridade que vocês já conhecem, respondi que o problema não era conivência, e sim, uma espécie de síndrome de burnout coletiva. Tomamos tanta porrada todos os dias que não nos chocamos mais com esse cenário devastador.

Na últma quarta-feira (3), os números chegaram a 1.910, segundo balanço divulgado pelo Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass). E a tendência, infelizmente, é que esse recorde de mortos seja batido nos próximos dias.

A pandemia segue firme e forte, como um jogador veloz e driblador, atacando os espaços de uma defesa completamente desarrumada. De acordo com a Fiocruz, não existe um único estado do Brasil que não esteja em situação crítica nesse momento.

:: Fiocruz alerta: "País vive piora simultânea de diferentes indicadores da pandemia" ::

Enquanto isso, a bola segue rolando no nosso país, que já foi o do futebol, num espetáculo fúnebre, como se nada estivesse acontecendo. A única diferença com relação aos tempos pré-pandemia está nos estádios: todos vazios, mesmo com o lobby de vários dirigentes interessados no dinheiro que o retorno do público pode trazer para o bolso de cada um deles.

A gente precisa parar com tudo, pessoal. Não tem jeito. A conclusão é essa. E essa ideia já começa a ganhar defensores dentro do futebol. Após o jogo entre Palmeiras e Corinthians realizado na última quarta-feira (3), o técnico português Abel Ferreira falou sobre a situação do país.

“Quando cheguei aqui, fiquei espantado. Na Europa tivemos dois lockdowns, que era só ficar em casa. Quando cheguei aqui vi que, de fato, as regras tinham que ser mais rígidas", ressaltou Abel Ferreira.

"Assusta a quantidade de mortos. Eu sou apaixonado pelo futebol, mas futebol sem vida não é nada. O que posso dizer é para que sejamos responsáveis. Assusta quando ligo o jornal e vejo as notícias, os hospitais lotados. Temos que esquecer o clubismo, a rivalidade, e lutar por uma causa. A covid é um rival que não tem dó, que mata".

:: Aqui na terra tão jogando futebol ::

Quem também se manifestou foi Lisca Doido, técnico do América-MG. Em entrevista ao canal Premiere, ele questionou a realização da Copa do Brasil no momento em que o país atravessa um dos piores momentos da pandemia, e fez um apelo a Confederação Brasileira de Futebol (CBF).

"Vou aproveitar para fazer um apelo às autoridades do Brasil, principalmente à CBF: é quase inacreditável que saiu uma tabela da Copa do Brasil hoje com oitenta clubes para o dia 10, dia 17. Que vamos levar delegação de 30 jogadores de um lado para outro do país. Nosso país parou, gente", desabafou Lisca.

"Não tem lugar nos hospitais. Eu estou perdendo amigos, amigos treinadores. É hora de segurar a vida. Aqui no [campeonato] Mineiro tudo bem, é mais perto, mas como vão levar uma delegação do Norte para o Sul? Presidente Caboclo, pelo amor de Deus, Juninho Paulista, Tite, Kéber Xavier, autoridades. Nós estamos apavorados", pontuou.

Não dá mais pra seguir com os campeonatos estaduais enquanto a pandemia estiver fora de controle e a maioria da população ainda não estiver vacinada. Pelo bem de todos os CPF's e do futuro de todos os CNPJ's.

Não é só uma questão de saúde pública: é uma questão de lógica. Como salvar a economia e recuperar as finanças dos nossos clubes se jogadores, comissões técnicas, funcionários e profissionais de imprensa seguem expostos ao novo coronavírus? Não faz o menor sentido.

A bola continua rolando e quicando. O show tem que continuar. Nem que seja na base do pay per view

Ou melhor, faz sentido sim. Se você acha que o CNPJ está acima do CPF e que – assim como quem nega a ciência e espalha notícias falsas – segue se reunindo no barzinho, frequentando festinhas clandestinas e fazendo de tudo para que o Brasil quebre recordes de mortos pela covid-19, faz sentido pra cacete.

:: Covid-19: Ministério da Saúde endossa retorno de torcidas aos estádios ::

Não sei se vocês perceberam, mas a gente já começou a sentir os efeitos dessa nossa postura egoísta.

Viramos párias internacionais. Quase todos os países do mundo estão com as portas fechadas para voos vindos daqui. Tudo por causa das variantes do novo coronavírus que andam passeando pelas nossas ruas.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) já emitiu uns 20 mil alertas sobre a nossa situação e nossos cientistas estão cansados de alertar a população.

Só que a bola continua rolando e quicando. O show tem que continuar. Nem que seja na base do pay per view.

A nossa Seleção de Basquete Masculino foi impedida de entrar na Colômbia. O time do Corinthians teve sérios problemas para embarcar para a Argentina, sede da Libertadores Feminina. Vários clubes do exterior estão se recusando a liberar atletas para os jogos da Seleção Brasileira nas Eliminatórias para a Copa do Mundo e por aí vai, meu amigo...

Imaginem só o tamanho da vergonha se nossos atletas forem impedidos de entrar em Tóquio para a disputa dos Jogos Olímpicos por conta disso tudo que foi falado.

Ninguém quer vir pra cá e ninguém quer nos receber, mas nem pintado de ouro. Tudo porque o brasileiro médio acha que a pandemia “não é isso tudo”. Ou porque já levou tanta porrada nesses últimos meses que já nem sente mais. Violência, perda de direitos e mais uma porção de problemas que nem dá pra enumerar aqui.

Fora o patrão que exige que a gente trabalhe. Com ou sem pandemia. É isso ou depender um auxílio emergencial que só Deus sabe quando vai chegar. Isso se não for parar no bolso de alguém que não precisa antes.

Fora os cortes em programas sociais, incluindo o Bolsa Atleta, e em uma porção de benefícios que ajudariam muito a nos manter com um mínimo de condições para sobreviver.

Aliás, esse é o ponto. Sobreviver. O que já é um lucro enorme diante de tudo que estamos vendo. Sobreviver no meio de um monte de informações falsas sobre tratamento precoce, uso de máscaras e críticas às demais medidas de prevenção.

Esse é o ponto. Sobreviver. O que já é um lucro enorme diante de tudo que estamos vendo

Nossa sobrevivência depende disso. Ou paramos com tudo ou não vai ter estádio que comporte o número de mortos causados pela nossa postura negacionista e mesquinha.

Confesso a vocês que nunca foi tão difícil falar de esporte como nesses tempos. Nunca foi tão incômodo fazer análises táticas, estudar o estilo de jogo dos treinadores contratados recentemente pelos nossos principais clubes e falar da preparação dos nossos atletas para os Jogos Olímpicos.

Está tudo errado nesse país. Ainda mais quando um monte de atleta olímpico defendeu e defende, com unhas e dentes, os causadores de uma das maiores tragédias sanitárias da história desse país.

Mas, se nossos políticos seguem embromando a população na compra das vacinas e cometendo todo tipo de crime de responsabilidade, será que não temos a nossa parcela de culpa? O burnout coletivo é compreensível. Só que ele não esconde a nossa inércia e a nossa responsabilidade.

Como seguir trabalhando e tocando a vida com quase dois mil mortos por dia? Eu não tenho essa resposta. E assim como todas as pessoas que ainda se importam com os outros, já começo a sentir os efeitos de tudo isso que foi relatado na minha saúde mental.

Pelo amor de Deus, usem máscara. Fiquem em casa se puderem. Limpem as mãos e cuidem da higiene. Evitem aglomerações. Deixem pra tomar cerveja em casa. E principalmente: OUÇAM A CIÊNCIA.

A gente precisa parar. Com tudo. Antes que a situação fique irreversível e comecemos a tropeçar em corpos nas ruas por falta de espaço nos cemitérios.

Abraços.

Edição: Rodrigo Chagas