Rio de Janeiro

Coluna

Novos ventos contra a resistência judicial à suspensão de remoções forçadas

Imagem de perfil do Colunistaesd
Na pandemia ou após a sua desejada superação, esses novos ventos podem contribuir para fazer cessar um cenário de violações e desigualdades em processos - Romeu Escanhoela / Fotos Públicas
Existe um outro caminho, constitucionalmente adequado, e é hora de segui-lo

Atendendo a uma demanda da Conselho Nacional de Bispos do Brasil (CNBB), no Observatório de Direitos Humanos do Poder Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou, no último dia 23, uma recomendação aos órgãos do Poder Judiciário que, devidamente aplicada, transformará a forma como o sistema de justiça enfrenta os processos que impliquem remoções forçadas decorrentes de conflitos coletivos em imóveis urbanos ou rurais.

A recomendação indica a adoção de cautelas em processos de desocupações coletivas, sobretudo quando envolvam pessoas em estado de vulnerabilidade social e econômica, durante a pandemia do coronavírus (covid-19). O documento menciona também a necessidade de ser observada a Resolução nº 10, de 17 de outubro de 2018, do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).

A orientação do CNJ baseia-se na constatação de que os mandados de desocupação coletiva de imóveis podem ter impacto indesejado sobre a manutenção das condições socioambientais e sanitárias necessárias à contenção do vírus. Assim, ao analisar um processo, cada juiz poderá levar em conta, entre outros aspectos, o grau de acesso da população afetada às vacinas ou a tratamentos disponíveis para o enfrentamento da covid-19.

A medida consolida um entendimento favorável à suspensão dos chamados “despejos” como forma de preservação de vidas e da saúde de pessoas envolvidas na execução de medidas de reintegrações de posse. Desde a eclosão da pandemia, diversas instituições e organizações já vinham buscando a sensibilização do Poder Judiciário para o imediato sobrestamento desses processos durante a pandemia.

Em março do ano passado, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) solicitou ao CNJ a suspensão do cumprimento de mandados de reintegração de posse coletivos. O documento da PFDC elencou medidas similares em diversos países e apresentou manifestação conjunta do Instituto dos Arquitetos do Brasil, do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico e da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas, na qual as entidades enfatizaram que as reintegrações atingem populações vulneráveis, “que vivem em locais caracterizados por adensamento excessivo e coabitação, com grandes dificuldades de encontrar outra moradia”. Assim, em caso de remoção, o isolamento dessa população torna-se ainda mais difícil, colocando-a em situação extremamente precária.

Antes do CNJ, o Supremo Tribunal Federal (STF) chegou a suspender a tramitação de ações possessórias contra povos indígenas ou ações anulatórias de demarcação dos territórios. Mais recentemente, na ADPF 742, o Supremo também suspendeu as demandas possessórias que envolvam as comunidades quilombolas.

Paralelamente, alguns tribunais editaram atos de suspensão de mandados, como o Tribunal de Justiça do Paraná, que reconheceu o fato de que o cumprimento das ordens de reintegração de posse decorrentes de ocupação coletiva “implica mobilização de grande contingente de profissionais e pode gerar aglomeração em espaços públicos, deixando inúmeras pessoas desassistidas e sem condições mínimas de higiene e isolamento para minimizar os riscos de contágio pelo coronavírus”.

No âmbito legislativo, alguns Estados, como Pará e Rio de Janeiro, também editaram normas específicas. No caso fluminense, após ampla mobilização da Campanha Despejo Zero, a Lei nº 9.020/2020 suspendeu o cumprimento de mandados de reintegração de posse na Justiça Estadual. A norma, contudo, foi posteriormente suspensa pelo Tribunal de Justiça, após provocação da associação de magistrados local, sob a alegação de que a matéria abrangeria direito civil e processual civil, matérias de competência da União.

Esse entendimento, contudo, é descabido. Como afirmam Beatriz Cunha e Patrícia Cardoso, a atuação dos Estados nesses casos é possível, pois o debate da lei corresponde à matéria de saúde pública. Afinal, o grande objetivo da lei fluminense foi o de impedir a exposição ao vírus de pessoas sujeitas a remoção, e não de reformar eventual decisão judicial ou mudar o rito processual.

Tais argumentos foram acolhidos pelo Min. Ricardo Lewandowski em reclamação proposta pela Defensoria Pública no STF. O ministro sublinhou que a lei tratava de saúde, um tema que pode ser abordado de forma concorrente pelos entes da federação. Além disso, o sobrestamento dos mandados seria meramente temporário no contexto excepcional da pandemia.

É sintomático, neste caso, que a contestação da lei do Rio de Janeiro tenha partido de uma associação de juízes, o que mostra o grau de resistência do Poder Judiciário a um enfrentamento mais dialógico da matéria. Como regra, a condução desses processos é marcada pela ausência de oitiva prévia das partes afetadas ou pela tentativa de conferir cumprimento extremamente célere às decisões, com o apoio da força policial, desconsiderando as peculiaridades de cada caso.

Certas incompreensões pairam sobre o tema, e as discussões judiciais que tinham acontecido até agora procuravam solucionar a questão de forma apenas localizada ou específica. Com a recomendação do CNJ, um novo horizonte se abre. A menção à Resolução nº 10, de 17 de outubro de 2018, do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), indica novos ventos na análise de demandas possessórias. Trata-se de um documento bastante completo, que poderá servir como guia na análise de requisitos para a efetivação das remoções e na condução de um diálogo efetivo entre as partes, tendo em vista o debate acerca da destinação do imóvel e a garantia de que os direitos fundamentais do grupo afetado sejam respeitados.

Por exemplo, é necessário averiguar se o imóvel cumpre a função social e a repercussão na execução de políticas públicas, como a demarcação de territórios, a reforma agrária e a reforma urbana. A resolução destaca ainda que devem ser buscadas soluções prévias de reassentamento aos ocupantes, de forma pacífica e sem qualquer tipo de coerção sobre a comunidade. Para tanto, medidas preventivas devem ser adotadas, quais sejam: i) reconhecimento da desigualdade das partes em litígio; ii) garantia do efetivo respeito ao contraditório e à ampla defesa; iii) garantia de agilidade no acesso à terra, à moradia e à regularização fundiária, independentemente de as propriedades serem públicas ou privadas; entre outras.

Deve-se ressaltar, ainda, no campo processual, a imprescindibilidade de medidas como a participação do Ministério Público e da Defensoria Pública, a realização de audiências conciliatórias e a utilização da inspeção judicial, de forma a garantir o adequado acompanhamento da realidade narrada nos autos, com a presença física do juiz na área, sempre com a possibilidade de plena escuta do grupo social afetado.

Ao final, deve-se ter em mente que as remoções e os despejos devem ocorrer apenas em “circunstâncias excepcionais”, quando o deslocamento “é a única medida capaz de garantir os direitos humanos” (art. 14). Em outras palavras, as pessoas não podem ficar sem teto, sem terra ou sem território, cabendo ao Judiciário garantir que a solução construída não afete o direito que as levou a ocuparem aquele imóvel.

Recomendações como a do CNJ pavimentam novas possibilidades de enfrentamento de desigualdades no sistema de justiça. A resistência à sua aplicação certamente ainda deverá ocorrer, mas agora há novos instrumentos de convencimento e ferramentas de luta por direitos. Por exemplo, espera-se agora que o alegado desconhecimento da Resolução nº 10/CNDH por integrantes do sistema de justiça não seja mais aventado, uma vez que o próprio conselho acena com a sua aplicação, impondo-se a utilização ou consideração de seus termos.

Na pandemia ou após a sua desejada superação, esses novos ventos podem contribuir para fazer cessar um cenário de violações e desigualdades em processos, em que famílias sequer são citadas e sofrem pressões constantes para abandonar os imóveis e deixá-los vazios ou sem produção. Existe um outro caminho, constitucionalmente adequado, e é hora de segui-lo.

 

Edição: Rodrigo Chagas