Minas Gerais

Coluna

O ventríloquo da estupidez

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"O criminoso [para o STF] não é o ventríloquo, mas o dono da voz. Onde se lê Daniel, entenda-se Jair" - Créditos da imagem: Reprodução/Internet
Daniel e Jair são viúvas porcinas em suas escolhas de vida: foram sem nunca ter sido

O deputado Daniel Silveira é um criminoso de acordo com os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal. Seu crime é inafiançável e foi detectado em flagrante, o que justificou a prisão decretada por Alexandre de Moraes e depois referendada pelo pleno do STF. Até aqui o julgamento foi técnico, o que vem depois é outra história. Há fortes motivos, ainda que não bons motivos, para que a decisão caia por terra antes de o brucutu esquentar a cela.

De um lado, o corporativismo do Congresso e, por outro, a reciprocidade da nova direção da casa frente a quem pôs a mão no bolso e no Diário Oficial para garantir os lugares à mesa. Sem falar na busca de uma ação preventiva contra o STF em seu papel de defensor da Constituição e do Estado democrático de direito. Em resumo, o pior do legislativo, o mais podre do Executivo e o temor do Judiciário.

A insuspeita unanimidade, num colegiado que vem se dividindo nos últimos anos em quase todas as decisões, no entanto, não consagra uma realidade dos fatos, mas o simulacro de um projeto. O criminoso, na verdade, não é o ventríloquo patético, mas o dono da voz e dos valores professados na fala divulgada nas redes: o presidente Jair Bolsonaro. Onde se lê Daniel, entenda-se Jair.

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O deputado boquirroto, em sua indigência expressiva, conseguiu apenas ser ainda mais primário que seu líder ao vocalizar as ideias que o presidente vem defendendo em 30 anos de vida pública. Não há novidade no conteúdo, a não ser o meio utilizado, o inequívoco interesse em bajular e o intento de incitação próprio das brigadas anônimas das redes. No mais, eles se parecem e se merecem.

Para começar, Daniel e Jair são viúvas porcinas em suas escolhas de vida: foram sem nunca ter sido. O deputado foi policial militar com carreira marcada por problemas com a corporação, entre reprimendas e prisões. Foi afastado. Já o presidente foi um militar que teve a trajetória interrompida por insubordinação e posto para fora da caserna. Os dois se elegeram com pautas de incentivo à violência e manifestações antidemocráticas. As semelhanças seguem.

Faz parte do repertório da dupla a defesa da ditadura, o elogio ao uso de armas e o desprezo aos direitos humanos. Ambos são machistas, limitados intelectualmente e detentores de votação que vem de territórios dominados pelo crime. Ambos foram eleitos pelo PSL. Bolsonaro tem filhos problemáticos e faz de tudo para protegê-los. Silveira ostenta, orgulhoso, a amizade com os rebentos.

Politicamente, o governo se arrasta de conchavo em conchavo

Todo o esgoto moral liberado pela boca do deputado carioca poderia ter jorrado do histórico de declarações do presidente: o desprezo pelas instituições, as grosseiras ameaças pessoais, o ataque aos integrantes do STF. Sem falar dos elogios à ditadura militar e aos instrumentos de arbítrio, como o AI-5 e a censura à imprensa. O que um dia representou o baixo clero para um, se traduz na pertença ao Centrão pelo outro. 

Em trágicos tempos de pandemia, eles se orgulham em não usar máscaras, não respeitam o distanciamento social promovendo aglomerações e exibem negacionismo arrogante e em confronto às orientações dadas pelos especialistas. O presidente já afirmou que não vai se vacinar. O deputado foi retirado de voo por se recusar a usar máscara. São cultores de fake news e confundem coragem pessoal com agressão. Usam a prerrogativa da liberdade de expressão para veicular ideias que confrontam qualquer cenário de liberdade.

A situação criada recentemente pelo parlamentar repercute uma dinâmica que vem sendo seguida pelo mandatário desde sua eleição: desviar a atenção dos verdadeiros problemas com cortinas de fumaça e declarações estúpidas. A cada questão substantiva, o governo responde com atritos, brigas com a imprensa, anúncios de ações estapafúrdias e bravatas.

O cenário de crise sanitária revelou um governo incapaz, dirigido por militares despreparados que desmontaram uma máquina pública de excelência (desde Mandetta, bem entendido, que acabou com o programa Mais Médicos), em meio a uma vacinação sem vacinas para todos, doentes sem leitos, descrédito da população em relação às medidas preventivas e mortes em alta. Em vez de enfrentar o maior problema mundial, ao qual todas as áreas hoje estão dependentes (da economia à educação), o governo põe em funcionamento sua máquina diversionista.

O criminoso [para o STF] não é o ventríloquo, mas o dono da voz. Onde se lê Daniel, entenda-se Jair

A situação de impasse econômico está cada vez mais profunda e se perpetua com medidas de entreguismo ao mercado, rompimento de laços comerciais virtuosos, fragilização do emprego, extinção de direitos e, recentemente, autonomia do Banco Central. Politicamente, o governo se arrasta de conchavo em conchavo, com o duplo empenho em pautar o atraso para agradar o eleitorado mais tacanho e proteger o clã presidencial de investigações engavetadas.

A âncora militar, que se enterrou pesadamente na máquina pública, é ao mesmo tempo uma garantia e um alerta. Não é um acaso que as afrontas de Daniel Silveira cheguem exatamente no momento em que o STF – mesmo com muito atraso –  se apresente criticamente em relação à ameaça do comando militar na condução do golpe e da prisão de Lula, no caso do tuíte do general Villas Boas. Não basta ser um governo cercado de militares por todos os lados, é preciso ser um governo militarizado.

O deputado bolsonarista Daniel Silveira precisa pagar pelos seus crimes. Mas não deve ser alçado a nada além de um porta-voz da estupidez. O que não significa que as declarações não importem. Como alertou Freud, quando cedemos demais com as palavras, podemos acabar por ceder nas coisas. Não foi outra a percepção da imprensa e de alguns intelectuais, que começaram por aliviar o fascismo de Bolsonaro para depois se deparar com o monstro. Que agora também vomita por bocas de aluguel.

Edição: Rafaella Dotta