Pernambuco

Eleições 2020

Povo de Pesqueira elege Cacique, mas Justiça ainda não o deixou assumir prefeitura

Marcos Xukuru foi condenado em caso que ele mesmo sofreu tentativa de homicídio; 6 municípios de PE seguem sem prefeito

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Por enquanto, vereador Bal de Mimoso (REP) comanda a prefeitura; o Cacique Marcos e seu vice Paulo Campos aguardam julgamento do TSE - Ororubá Filmes

Dois meses após as eleições, seis municípios pernambucanos seguem sem saber quem chefiará a prefeitura até 2024. O maior desses municípios é o de Pesqueira, que talvez seja também o caso mais emblemático. Pesqueira tem 68 mil habitantes e fica na região Agreste do estado. A cidade tem cerca de 15% de sua população formada por indígenas da etnia Xukuru, a maioria vivendo em aldeias na zona rural e parte vivendo na área urbana, onde há um bairro com nome da etina. Há algum tempo o povo consegue eleger dois vereadores para a Câmara Municipal, mas em 2020 os indígenas ousaram e colocaram sua principal liderança, o Cacique Marcos, para disputar a prefeitura. E ele venceu. Mas a Justiça Eleitoral ainda não permitiu sua posse.

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Marcos Luidson de Araújo, 42 anos, é cacique do povo Xukuru da Serra do Ororubá. Filho das lideranças indígenas Zenilda e o cacique Chicão, assumiu o posto de cacique aos 25 anos, em 2003, cinco anos após o assassinato de seu pai. Para entender o embate é preciso voltar pelo menos 30 anos, ao fim dos anos 1980. “Antes da Consituição de 1988 éramos considerados pessoas de fora da sociedade e que precisavam ser ‘integradas’, o que significava abandonar nossa cultura e modo de vida. Existia até meta para quando o Brasil deixaria de ter índio”, diz o advogado Guilherme Araújo, ou Guila Xukuru.

A partir da Constituição, reconhecendo os indígenas e seus territórios, o Cacique Chicão intensifica o processo de “retomadas”, que nada mais é do que o povo reocupar a terra que pertence àquele povo, apesar de estar sob posse (uso) de outra pessoa. Os indígenas, antes usados como mão de obra barata daqueles senhores, queriam de volta suas terras. “Os latifundiários passam a nos ameaçar e a situação culminou com os assassinatos do procurador da Funai, Geraldo Rolim; o assassinato do filho do Pajé Zequinha; e depois do Cacique Chicão. Além de outras lideranças nossas que foram ameaçadas”, lembra Guila. Chicão foi morto a tiros em 1998, por um pistoleiro, a mando de um fazendeiro em atrito com os Xukurus.

Após a morte de Chicão, o povo Xukuru passa anos sem cacique, até que Marcos, ainda com seus vinte e poucos anos, filho de Chicão e Zenilda, é reconhecido como cacique. “E ele continuou tocando as lutas e retomadas, levando o povo Xukuru a reocupar o território que já havia sido reconhecido como seu. E as ameaças voltam a se intensificar. Enfrentamos famílias que tinham muita força política e econômica na região”, lembra Guila.

E duas décadas depois o cacique Marquinhos venceu a eleição contra a então prefeita Maria José (DEM). Cerca de 37 mil pesqueirenses foram às urnas, dos quais 17,7 mil (51,6%) votaram no Cacique e outros 15,6 mil (45,5%) votaram em Maria José. O candidato Antônio Mota (PSOL) ainda somou mil votos (2,9%).

Mas Marcos foi eleito sub-júdice, já que o Ministério Público Eleitoral (MPE) pediu ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE-PE) que a candidatura do cacique fosse indeferida. Isso porque ele possui contra si uma condenação por “crime contra o patrimônio privado” e, portanto, segundo o MPE, acionado pela candidata derrotada, Marcos estaria impedido pela Lei da Ficha Limpa. O suposto crime, pelo qual o cacique efetivamente foi condenado em 2015, foi o de incêndio a propriedades privadas ocorrido em 2003.

No início dos anos 2000, um projeto encampado pelo então prefeito visava passar um pedaço das terras indígenas Xukurus para o controle da Igreja Católica, com objetivo de incentivar o turismo religioso no município. “O povo Xukuru nada se opõe às visitações que acontecem ao Santuário de Nossa Senhora das Graças dentro do território. Inclusive a nossa religiosidade tem sincretismo com a religiosidade católica e participamos das festividades”, diz o indígena. “Mas a forma que foi pautado inicialmente, sem diálogo com o povo Xukuru, não contemplava o nosso projeto de vida. Isso não foi decisão do Cacique Marcos, mas da organização do povo Xukuru”, pondera.

Mas parte dos Xukurus que vivem próximos à área que seria transformada ficou insatisfeita com a decisão, criando uma cisão: os Xukurus de Cimbres. Marcos seguiu como cacique dos Xukurus do Ororubá. Guilherme Araújo lembra que havia uma promessa de que o santuário católico traria ganhos econômicos para a localidade. “Sempre prometem isso quando há projetos desse tipo, mas na maioria das vezes os ganhos não se realizam e ainda traz problemas para os povos que ali vivem”, avalia Guila. “Hoje em dia há outro projeto, do qual participamos na elaboração e nos dispomos a ajudar na construção”, informa.

Sobre os Xukurus de Cimbres, ele afirma que hoje a relação é saudável e diplomática. “Nós os reconhecemos e respeitamos totalmente a forma que eles se reconhecem, dialogamos com a organização política deles da mesma forma que dialogamos com todas as etnias Brasil afora”, diz Guila. Mas na eleição de 2020 os Xukurus de Cimbres declararam apoio à candidata adversária, a agora ex-prefeita Maria José (DEM), que é esposa do ex-prefeito João Eudes, o mesmo que tentou implementar o projeto de turismo religioso na terra indígena sem consultar previamente os Xukurus.


Em 1998 o seu pai, o Cacique Chicão, foi assassinado a mando de um latifundiário local; após um hiato sem cacique, o povo Xukuru reconheceu Marquinhos, então com 25 anos, como seu líder / Arquivo pessoal

De volta a 2003, em meio à disputa sobre a construção do santuário, o cacique Marquinhos dirigia um caminhão quando sofreu um ataque armado de José Lourival Frazão, indígena de Cimbres. Frazão matou os dois indígenas que acompanhavam Marcos, mas o cacique escapou ferido e se escondeu até o dia seguinte. Informados do ataque, os Xukurus do Ororubá foram até a região de Cimbres e atearam fogo em quatro casas e cinco veículos. O cacique Marcos nega ter participado da ação, mas a Justiça o condenou – junto a outros indígenas – pelo crime de incêndio. E foi por esta condenação que ele ainda não pode assumir a prefeitura.

>> Leia: Cacique é condenado antes de depoimentos de defesa (2009)

A defesa do prefeito eleito pontua que o crime de incêndio não está incluso na Lei da Ficha Limpa. Essa decisão cabe ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Em paralelo, no Supremo Tribunal Federal (STF), corre uma liminar do PDT para suspender trecho da Lei da Ficha Limpa. Na norma atual, o candidato fica inelegível por oito anos após o cumprimento da pena – no caso do Cacique, a partir de 2015, estando inelegível até 2023. O pedido do PDT é para que os oito anos contem a partir da condenação em segunda instância ou órgão colegiado, que no caso do Cacique Marcos se deu em 2009, ao ser condenado pela Justiça Federal. Ele estaria elegível desde 2017, caso o colegiado do STF acate a modificação.

No fim de dezembro o TSE decidiu que nos municípios em que o candidato foi eleito sub-júdice, quem deve tomar posse como prefeito por enquanto é o presidente da Câmara de Vereadores. Desse modo, o Cacique Marquinhos (REP) e seu vice, o ex-vereador Paulo Campos (PSB), ainda não puderam tomar posse do mandato que o povo pesqueirense lhes conferiu.

Na redução de danos, o cacique ao menos conseguiu colocar um aliado na prefeitura. O Republicanos elegeu 5 vereadores, um terço das 15 cadeiras da Câmara. O DEM de Maria José elegeu dois. Para a presidência da casa, Marquinhos Xukuru conseguiu eleger o vereador aliado Bal de Mimoso (REP), que assumiu o cargo de prefeito interinamente, deixando na presidência da Câmara o vereador indígena Pastinha Xukuru (REP).

Os outros municípios que aguardam decisão da Justiça são Ilha de Itamaracá, na região metropolitana do Recife; Palmares, na zona da mata; Capoeiras e Palmeirina, no agreste; e Tuparetama, no sertão.

Edição: Vanessa Gonzaga