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"O samba nasceu de uma mulher e isso não pode ser apagado", diz Teresa Cristina

A "Rainha das Lives" na pandemia fala sobre música, política e racismo, encerrando a programação do BDF Entrevista 2020

Ouça o áudio:

Tetê, como é conhecida a cantora, se tornou a "Rainha das Lives" levando arte e cultura durante a pandemia - Reprodução/ Arquivo Pessoal
A gente não pode ter vergonha de mudar, a gente não pode ter vergonha de aprender

Teresa Cristina não se tornou a “Rainha das Lives” por acaso. Para além de animar as noites dos brasileiros quarentenados durante a pandemia, sua missão, explica, era levar “cultura brasileira para os lares. A cultura escondida nos livros de história”. 

Ao lado de grandes nomes da música brasileira como Chico Buarque, Caetano Veloso, entre outros, interpretando e relembrando o cancioneiro nacional, Tetê, como é conhecida a cantora, também conversou com uma série de políticos e personalidades do país: Lula, Marcelo Freixo, João Paulo Rodrigues, do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e uma série de pensadores.

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Desde o final dos anos 1990, Teresa Cristina é uma das protagonistas do samba carioca e explica que o samba e a política não podem caminhar separados: “Eu não posso ser sambista e admirar, Zé Ketti, Silas de Oliveira, Paulo da Portela e não gostar de política. Fica faltando alguma coisa”, diz Teresa.

A questão racial, da qual diz não ter tido afinidade até sua entrada na UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), onde formou-se em Letras, também está presente nos temas abordados em sua live. E não seria diferente, afirma, com o 2020 que atravessamos. 

“Eu era contra a Política de Cotas. Era muito mal informada. Sempre trabalhei desde criança, desde os 12 anos de idade e, por poder ter dinheiro para pagar um cursinho pré-vestibular e entrar em uma universidade pública, eu não reconhecia que era privilegiada, sim. A gente não pode ter vergonha de mudar, a gente não pode ter vergonha de aprender”, reflete a cantora. 

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Na conversa com o Brasil de Fato, que encerra o BDF Entrevista de 2020 - programa que vai ao ar todas às sextas-feiras, às 20h, na Rede TVT e no Youtube do BDF - ela também fala sobre suas referências, trajetórias, política e, claro, samba. 

Confira alguns trechos:

Brasil de Fato: Tua relação com o samba nos parece muito intrínseca, mas sempre foi assim? Quando ela surgiu? 

Teresa Cristina: Na minha infância - eu sou dos anos 1970 - era muito influenciada pela cultura norte-americana, pela música preta, a música Disco: Dana Sana, Barry White, Tavares. Eu gostava muito desse estilo musical. 

Quem me apresentou o samba foi meu pai, mas naquele momento, o que eu queria mesmo era ouvir música Disco. Quando eu entrei na UERJ, para estudar letras, é que eu comecei a me formar como cidadã, como um ser político. E eu acho muito importante, quando eu passo meu conhecimento adiante através das lives, a gente não deixar de propagar e passar adiante o conhecimento. 

O samba do Rio de Janeiro nasceu das mãos de uma mulher. Isso é muito importante, mesmo que a história tenha apagado um pouco essa participação.

Quando eu entrei na UERJ eu era contra as cotas. Olha só! Sempre trabalhei desde criança, desde os 12 anos de idade e, por poder ter dinheiro para pagar um cursinho pré-vestibular e entrar em uma universidade pública, eu não reconhecia que era privilegiada, sim. Mesmo sendo de classe média baixa, meu pai feirante, sustentando cinco filhos, suburbana. Eu tinha algum privilégio.

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Quando eu entrei para o movimento estudantil, essa ficha foi caindo para mim. Eu não tenho vergonha de dizer isso, porque podem existir pessoas que também pensem como eu pensava antes de entrar na UERJ. E a gente não pode ter vergonha de mudar, a gente não pode ter vergonha de aprender”.

As tuas lives já se tornaram uma tradição na internet. Mas elas vão para além da música. A quem te compare com Tia Ciata e tudo o que representa as raízes do samba, a oralidade.

A Tia Ciata é quem trouxe o samba para o Rio de Janeiro e isso significa muita coisa. O samba do Rio de Janeiro, que depois foi levado a todos os cantos do Brasil, nasceu das mãos de uma mulher. Isso é muito importante, mesmo que a história tenha apagado um pouco essa participação.

Eu cresci vendo nas revistas, nas novelas, nos filmes, nas propagandas, nos outdoors, mulheres brancas em lugar de destaque e sucesso

Ele nasce (o samba) e se mantém, por uma força ancestral. A ancestralidade, através da oralidade, vai se perpetuando. Então eu, como sambista, me sinto nessa missão de passar um conhecimento, de passar adiante o que eu aprendi, o que eu vivi. E foi isso que, de alguma forma, tentei fazer nas lives

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Momentos difíceis que a gente passou, no mundo todo, aqui no Brasil um pouco mais porque a gente teve uma dificuldade acelerada pelo descaso de algumas autoridades com relação à quarentena, ao isolamento. E eu percebi que muitas pessoas, assim como eu, estavam em casa sem saber o que fazer, sem motivação, sem esperança de sobreviver a essa pandemia. 

Quando a gente despolitiza as coisas, a gente perde nossa fala, nosso direito de reivindicar

A gente se preocupou com a saúde, mas também com a situação financeira. Muitos brasileiros passaram por dificuldades e continuam passando. E eu tentei, através das lives, me aproximar das pessoas, de alguma forma dizer a essas pessoas que elas não estavam sozinhas. 

A música também acabou servindo como pano de fundo para discussões muito maiores, sobre o país, sobre a relação da música com a política.

Eu admiro muito uma cantora, compositora, ativista, chamada Nina Simone. E ela tinha uma fala muito direta, muito forte. E uma das coisas que ela dizia é que o artista, para ser considerado artista, ele tem que refletir o tempo dele. Em outra fala, ela dizia que a liberdade era a maior virtude que um artista, uma pessoa poderia ter. É você se sentir livre. 

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Eu não gosto desse pensamento que algumas pessoas têm, e que ouço desde criança, que nesse país não se discute futebol e religião. E por não se discutir religião hoje a gente têm Congresso, câmaras de vereadores cheias de evangélicos fundamentalistas que votam muitas vezes contra o povo.

Não discutir a política cria seres apolíticos. A gente não pode não discutir a política, porque ela interfere diretamente na nossa vida. Política é o preço do arroz, é a discussão antirracista, é  falar sobre segurança, sobre os direitos que as mulheres devem ter sobre seus corpos. Então, a política me atravessa a todo momento.

Eu não posso ser sambista e admirar, Zé Ketti, Silas de Oliveira, Paulo da Portela, e não gostar de política. Fica faltando alguma coisa

Quando a gente despolitiza as coisas, a gente perde nossa fala, nosso direito de reivindicar. Por isso não gosto de ser isenta, de ficar em cima do muro. Acho que a gente tem que assumir nossas posições. Até porque ninguém está sempre 100% certo.

A gente está em um país que sofreu muito com uma ditadura, onde muita gente desapareceu. Um país que acabou de tomar um golpe horroroso, um país que prendeu um presidente injustamente, sem provas. Um país que "impeachmou" uma mulher, com um discurso misógino, machista, fascista. O que fizeram com a Dilma foi muito feio.

E, como artista, me sinto no dever de me posicionar sobre certas questões. Se eu influencio alguém, se as minhas ações são ouvidas por alguém, eu não posso não passar minha verdade para essas pessoas. 

Eu não posso ser sambista e admirar, Zé Ketti, Silas de Oliveira, Paulo da Portela, e não gostar de política. Fica faltando alguma coisa.

E ao falar sobre política no Brasil e sobre esses mestres do samba, é impossível deixar de lado a discussão sobre o racismo estrutural brasileiro?

O primeiro avanço foi admitir a existência do racismo estrutural. De um racismo que está além das nossas falas, além da percepção. São "pequenos detalhes" que cercam a gente a vida inteira. Eu cresci vendo nas revistas, nas novelas, nos filmes, nas propagandas, nos outdoors, mulheres brancas em lugar de destaque e sucesso. Como eu vou acreditar que uma mulher negra é tão valorizada nessa sociedade, quanto aquela mulher que está sempre em evidência?

Foi um ano marcado por essa discussão antirracista e essa luta vem de muito tempo, mas a discussão chegou mais cedo e ainda não acabou

A mulher tem sempre os mesmos gostos, a mesma cor da pele. Estão sempre em um status de poder e os empregados são pretos. Como eu vou me transportar para a realidade? Eu vou achar que isso é verdade. Quer dizer, o poder está sempre com a pessoa branca e a pessoa negra é subserviente, recebe ordem, é humilhada. Quando ela tenta sair do lugar onde está, é chamada de insolente, como eu já fui chamada. De insolente, de abusada, autoritária. 

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Tinha um professor de cultura brasileira na Universidade. Quando eu reclamei com ele sobre o olhar do Gilberto Freyre, o autor de Casa Grande e Senzala, quando ele dizia que a miscigenação amenizou a relação entre o senhor de engenho e os escravos, e eu dizia que essa palavra foi construída em cima de muito estupro, de muito sexo sem sentido, sem permissão, ele dizia que eu era muito revoltada, muito rancorosa. 

Esse tipo de resposta que as pessoas dão, nasce de um racismo estrutural. A resposta do Mano Menezes (ex-técnico do Bahia), quando o Gerson (meia do Flamengo) diz que foi vítima de racismo dentro de campo, ele (o Mano) fala com ele (o jogador): “malandragem não”. Na visão da branquitude ainda ligada a esse racismo estrutural, a malandragem está ligada à pele preta. 

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Então, foi um ano que foi marcado por essa discussão antirracista. Porque essa luta vem de muito tempo, mas a discussão chegou mais cedo e ainda não acabou. Porque ainda temos o mesmo discurso de volta. Nós estamos em dezembro de 2020. Não é para o Mano Menezes falar aquilo. Não cabe. 

Quando você entra nas redes sociais do Bahia, a quantidade de gente branca defendendo o colombiano, dizendo: "ah, ele não sabe nem falar português direito, como ele foi racista?". Para ser racista você não precisa falar nenhuma palavra. Com um gesto você pode ser.

Edição: Douglas Matos