Rio de Janeiro

Coluna

Sobre ídolos, instituições e o final de um ano muito difícil

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Neymar vai dar uma festança de réveillon em Mangaratiba para 500 convidados (ou 150 segundo a sua assessoria) num momento em que o país já chega perto dos 200 mil mortos por causa da covid-19 - Team Pics / PSG
Os ídolos que escolhemos dizem muita coisa sobre nós mesmos

De acordo com o nosso sempre querido dicionário, “ídolo” é toda celebridade por quem se tem grande admiração ou a quem se ama apaixonadamente. Pode ser um cantor (ou uma banda), uma atriz, um político, uma influenciadora digital ou até mesmo um jogador de futebol.

Geralmente colocamos uma certa aura de divindade nos ídolos que escolhemos. É como se eles estivessem acima de nós, reles mortais, apenas pelo simples fato de fazerem algo muito bem e cativarem as pessoas com seu talento. É como se eles não cometessem os erros que eu e você cometemos todos dos dias das nossas vidas.

Só que as coisas não funcionam bem assim. Nossos ídolos também são feitos de carne e osso. São gente como a gente. E os ídolos que escolhemos dizem muita coisa sobre nós mesmos.

Você já viu este colunista elogiar Neymar mais de uma vez por conta do seu amadurecimento enquanto jogador de futebol. Ficou muito menos individualista e muito mais “coletivo”. Finalmente entendeu que precisa jogar para o time e que o velho e rude esporte bretão é jogado com onze jogadores e não com apenas um.

Ao mesmo tempo, seu posicionamento contra o racismo nos gramados ajudou a colocar um pouco mais de luz em cima de um problema que ainda é extremamente grave e que precisa de soluções concretas e eficazes.

Só que Neymar também escorrega. E feio.

O Neymar que vestiu a camisa do “Black Lives Metter” é o mesmo que vai dar uma festança de réveillon em Mangaratiba de cinco dias para 500 convidados (ou 150 segundo a sua assessoria) num momento em que o país já chega perto dos 200 mil mortos por causa da pandemia de covid-19. Nem é preciso dizer que as redes sociais e a imprensa desceram a mamona em cima do jogador do Paris Saint-Germain por conta dessa atitude no mínimo irresponsável.

De Mangaratiba vamos para a cidade de Santos. Mais precisamente para a Vila Belmiro.

Nesta segunda-feira (28), o presidente Jair Bolsonaro participou de um amistoso beneficente organizado por Narciso, ex-volante do Santos. A partida reuniu jogadores, ex-jogadores, músicos e dirigentes. Ele chegou até a fazer um gol ajudado pelo time adversário e comemorou fazendo as já conhecidas “arminhas” para as câmeras.

Essa foi, sem qualquer sombra de dúvida, uma das cenas mais patéticas e mais ridículas já vistas dentro do estádio que abrigou nomes como Pelé, Coutinho, Dorval, Marta, Cristiane, Serginho Chulapa, Pepe, Mengálvio, Gilmar, Zito e o já mencionado Neymar.

Ao final do amistoso, Bolsonaro (ídolo de muitos brasileiros) minimizou a demora para a liberação e a aquisição das vacinas para a covid-19 e soltou bravatas que nem valem a pena serem reproduzidas aqui neste espaço. Mas não é a primeira vez que o futebol é usado para promover um governo que fez absolutamente tudo errado no combate à pandemia.

Neymar, Bolsonaro e muitos outros foram escolhidos por “ídolos” por várias pessoas por se alinharem ao que elas pensam sobre a vida, sociedade e tudo mais. Existe uma afinidade clara de princípios e de ideologia (por mais perversa que seja) nessa relação.

E isso também acaba respingando nas instituições. O que dizer do Santos Futebol Clube? Em menos de seis meses, o Peixe contratou jogador condenado por estupro (e que ridicularizou a vítima mais de uma vez), teve dirigente acusado de injúria racial e ainda exaltou um político que elogia torturadores.

Tenho muita simpatia pelo Santos por toda a história do clube no futebol mundial. Mas é impressionante como no ano de 2020 foi ruim fora de campo. Justamente por escolhas de pessoas que se alinham a esse tipo de pensamento.


Em menos de seis meses, o Peixe contratou jogador condenado por estupro, teve dirigente acusado de injúria racial e ainda exaltou um político que elogia torturadores / Ivan Storti/Santos FC/Natal Sem Fome

Aliás, foi sim um ano muito difícil. Perdemos entes queridos, vimos máscaras caírem e celebramos a estupidez humana (como bem cantou Renato Russo na Legião Urbana) várias e várias vezes. Vimos a pandemia do novo coronavírus bater à nossa porta e nos impedir de seguir com a nossa rotina. Adotamos novos hábitos para nos proteger e proteger aqueles a quem amamos.

Alguns dos nossos “ídolos” seguiram as recomendações. Outros, em nome dos “cuidados com a saúde mental”, fizeram festinhas, promoveram aglomerações, forçaram a barra com o retorno das atividades no esporte e ignoraram completamente o alerta feito por cientistas de todo o mundo. Era preciso permanecer em casa e se expor o mínimo possível para que a doença não se espalhasse.

E talvez o mais triste de tudo tenha sido ver pessoas com mentalidade progressista furando o isolamento social em nome dessa “sanidade mental”. Gente conhecida por combater as injustiças e se posicionar contra preconceitos de todo o tipo, mas que faziam suas festinhas escondidos das lentes dos celulares e das redes sociais.

Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço. E se eu fiz, foi porque eu precisava fazer. Mesmo que isso signifique expor uma porção de gente ao novo coronavírus.

A sintonia entre o brasileiro médio e os “ídolos” escolhidos por ele ajudam muito bem a explicar todo o caos que se passou aqui por essas bandas em 2020

De nada adianta criticar Bolsonaro, Neymar ou a “celebridade” que provocou aglomerações por conta de festinhas se você foi à praia nesse final de semana (ou em qualquer outro), foi tomar uma cervejinha com seus amigos ou frequentou boates usando a desculpa de que sua “sanidade mental dependia disso”.

Os ídolos que escolhemos dizem muito sobre o que pensamos e como agimos. Para o bem e para o mal. Ídolos são gente como a gente. Desde o jogador de futebol, o influenciador digital ou o cantor da sua preferência. O ponto é entender que somos influenciados e influenciamos os outros na mesma medida.

O ano de 2020 não foi complicado apenas por causa da pandemia ou por causa do governo. Ele foi difícil porque eu e você também compactuamos com tudo o que foi dito aqui. A sintonia entre o brasileiro médio e os “ídolos” escolhidos por ele ajudam muito bem a explicar todo o caos que se passou aqui por essas bandas em 2020.

Eu poderia falar outras coisas sobre o ano que está chegando. Pedir que o Brasil faça uma boa Olimpíada em Tóquio, que nosso futebol finalmente recupere sua posição de prestígio e que o racismo, o machismo e a homofobia sejam varridos do esporte.

Por hora, apenas vou pedir bom senso para escolher melhor nossos ídolos, juízo para entender que minhas atitudes podem prejudicar os outros e força para seguir vivendo e escrevendo.

Foi sim um ano muito doloroso. Não só no esporte. Talvez seja por isso que eu considere que o fato de chegar vivo em 2021 seja uma vantagem e tanto.

Aquele abraço.

Edição: Leandro Melito