Minas Gerais

RACISMO

Crônica | Menino do Rio

Na sua comunidade ajudava os que mais precisavam. Sua mãe sonhava com seu filho doutor

Belo Horizonte | Brasil de Fato MG |
ilustração lacruz
"Ele morreu sem saber que o racismo é a pior doença da sociedade" - Créditos: @lacruz

Filho único. Seu pai era dono de quase todos os bares e mercearias das quebradas. Sua mãe vivia pra ele. Ela perdera dois filhos.  Fazia todos os seus gostos.  Ele crescera cercado por todos. Da família aos amigos. Era uma espécie de joia rara das quebradas. A mãe natureza foi bondosa com ele.  Simpático, conquistava tudo e todos. Na sua comunidade ajudava os que mais precisavam. Ele era, literalmente, o cara. Ali não tinha pra ninguém. 

Sua mãe planejava seu futuro com o maior carinho. Seu pai trabalhava duro, para não lhe faltar nada. Ele era criado literalmente como um playboy. Mas nunca isso subiu à cabeça. Ele era preocupado com todo mundo.

O tempo foi passando. Ele pouco saiu das quebradas. Seu mundo era ali. Estudou, brincou e cresceu praticamente ali. Tudo ao seu alcance. Nem viajar para algum lugar. A escola era do lado de casa. Foi do jardim ao terceiro numa boa. Vivia na maior tranquilidade, mermão!!!!

Era bom de bola. Seu time campeão várias vezes. Não tinha para ninguém. O cara era o terror no futebol. Principalmente, futebol de salão. Ágil como o Falcão. Ele gostava tanto de futebol de salão que construíra uma quadra, em um dos terrenos do seu pai, na comunidade. Ali ele viveu os melhores dias da sua vida.

Ele não entedia a questão de classe e da sua cor

Sua mãe sonhava com seu filho doutor. Ela tinha um sonho, de vê-lo estudando numa faculdade. Dessas que ela nunca teve oportunidade de estudar. Ele nem pensava nisso.  Ele de certo ponto, era até simples.  Apesar da boa vida.  Ele pensava em tocar os negócios do pai. Pronto. Já basta. Sua mãe insistia. Quero ver você doutor. Ele, para não brigar com ela, aceitou. Na semana seguinte foi fazer matricula num desses cursinhos caros da cidade.

O primeiro grande choque. Ali, ele não era ninguém. Ninguém o tratava como na sua quebrada. Ele era mais um. Talvez, menos um.  As pessoas eram completamente diferentes daquelas que ele fora criado. Lá na sua quebrada todo mundo era praticamente igual. Aqui, ele sentira que não.

Os meses foram passando. E a tristeza foi abatendo sobre ele.  Ele não entendia como a vida funcionava. Por que as pessoas o discriminavam. Ele não entedia a questão de classe e da sua cor. Quase ninguém trocava ideias com ele. Muitos riam das suas gírias e do seu modo de falar.

Ele se apaixonou pela menina mais bonita do cursinho. Foi outra grande decepção. Numa das conversas com ele, ela mandou ele se enxergar no espelho. No mesmo dia, ele ficou horas se olhando no espelho. Ele não encontrara nada de errado.

Aquela vida boa de outrora. Já não era tão boa assim. Ele começou a entender como as pessoas são duras fora da sua comunidade. Descobrira que era filho adotivo, nessa mesma época que descobrira a discriminação. Seu mundo caiu. Não sentia mais calor e nem frio. Para não ver a mãe triste, não desistiu do cursinho. Naquela semana fez a inscrição para direito na universidade federal. Sua mãe era só alegria. Ele era só disfarce.

No final do ano todo cursinho tem festas e comemorações. Ele animou. Comprou até uma bermuda da moda. Cortou o cabelo. Correntinha de prata e um pisante da hora. Fazia tempos que ele não animava desse jeito.

Na cabeça dele todo mundo era igual. Todo mundo era gente boa

Como tinha poucos amigos no cursinho, comprou quatro entradas para levar a moçada da sua comunidade. Teria show ao vivo de uma banda de rock famosa e uma cantora de axé. Ele estava todo animado. O show seria num lugar distante da cidade. Precisaria ir de carro. Foi o que ele fez. Colocou os amigos no carro e foi pra festa.

Logo na frente da estrada, perto do show, aconteceu o roubo de um carro parecido com o dele. Que azar. A polícia “confundiu” os carros e os meninos. Já chegou atirando, sem ao menos parar o carro e fazer uma averiguação. O saldo foi um terror. Foram todos mortos.

A polícia alegou que os carros eram parecidos e os meninos estavam de bonés. Também, claro, eram todos negros.

Nosso herói morreu. Era um menino boa gente. Morreu sem entender a selva de pedra onde foi jogado. Na cabeça dele todo mundo era igual. Todo mundo era gente boa. Todo mundo era solidário.

Nos jornais, que quase sempre falam mentiras, a manchete era que tinham passagens na polícia. Que eram suspeitos do roubo do carro. Ele, ao contrário, não fazia mal a ninguém. Sua mãe caiu em depressão profunda. Seu pai vendeu todos os seus bens e foram para a cidade onde nasceram.

Ele morreu sem saber que o racismo é a pior doença da sociedade.  Ele nem sabia que sofrera racismo. Morreu sem saber do ódio que assola as pessoas. Ele morreu como um bandido. Na cabeça dele, só queria ser feliz e fazer sua mãe feliz. Só não contava com essa guerra diária que mata, faz sofrer e tira a felicidade de muita gente.

Rubinho Giaquinto é covereador  da Coletiva em Belo Horizonte.

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Edição: Elis Almeida