Rio Grande do Sul

Memória

Suzana Lisboa: “Os crimes da ditadura inspiram e alimentam os que hoje são cometidos”

Companheira de Luiz Eurico Tejera Lisboa, cujo corpo foi o primeiro a ser encontrado dos desaparecidos da ditadura  

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"É impossível que a gente consiga construir um país em cima desses crimes insepultos, como se nada tivesse acontecido" - Guilherme Santos/Sul21

“Desaparecidos: os mortos sem sepultura, as sepulturas sem nome. E também: os bosques nativos, / as estrelas na noite das cidades, / o aroma das flores, o sabor da fruta, / as cartas escritas à mão, / os velhos cafés onde havia tempo para perder tempo, / o futebol de rua, / o direito a caminhar, / o direito de respirar, / os empregos estáveis, / as aposentações estáveis, / as casas sem grades, / as portas sem fechadura, / o sentido da comunidade / e o bom-senso.”

Os versos acima, escritos por Eduardo Galeano, no livro dos Dias, presta homenagem aos Desaparecidos Políticos no continente, cuja data é celebrada no dia 30 de agosto. No Brasil, em 2014, a Comissão Nacional da Verdade reconheceu, em seu relatório final, 434 mortes e desaparecimentos de vítimas da ditadura militar no país, entre essas pessoas, 210 são desaparecidas.

Entre os nomes, o de Luiz Eurico Tejera Lisboa, Ico, marido e companheiro de Suzana Lisboa. Desaparecido em 1972, o seu corpo foi localizado sete anos após, pela sua companheira, no dia em que a Lei da Anistia era votada no Congresso Nacional. O corpo foi localizado no Cemitério Dom Bosco, em Perus, São Paulo, local que em 1990 foi descoberta a Vala de Perus, onde foram encontrados 1.049 sacos contendo ossadas de centenas de corpos de indigentes, pobres, desaparecidos políticos. É a partir desse descobrimento, do primeiro corpo a ser encontrado, que se formou uma intensa busca pelos mortos e desaparecidos da ditadura brasileira. 

Em tempos em que o Brasil tem negacionistas no poder, e admirador de um torturador, o Brasil de Fato RS conversou com Suzana Lisboa, sobre os 25 anos da Lei Nº 9.140 em que o país reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979. Conforme aponta muitas famílias buscam pelos seus entes queridos desaparecidos, uma vez que através da referida lei apenas 136 nomes foram reconhecidos. 

“O Brasil demorou para tratar dessa história. Desde a Anistia o Brasil virou as costas para esse assunto. A própria esquerda nos abandonou nesse assunto, porque tratar sobre isso é considerado revanchismo pela direita, e a esquerda nos dizia que estávamos cutucando a onça com vara curta e colocando em risco a incipiente democracia”, pontua. Para ela os crimes da ditadura inspiram e alimentam os que hoje são cometidos contra a população pobre, marginalizada, contra os negros, contra as lideranças políticas. 

Em 2007, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos do qual Suzana fez parte lançou o livro, Direito à Memória e à Verdade, resultado de 11 anos de trabalho da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e recupera a história de 479 militantes políticos, que foram vítimas da ditadura militar no Brasil durante o período de 1961 a 1988.

Veja abaixo a entrevista completa

Brasil de Fato RS - Nesta sexta-feira (4), completa 25 anos da Lei Nº 9.140 de dezembro de 1995, em que o Brasil reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979. Qual o significado que essa lei tem para ti? 

Suzana Lisboa - Essa lei foi uma conquista enorme dos familiares de mortos e desaparecidos em que pela primeira vez o Estado assumiu sua responsabilidade nos assassinatos e desaparecimentos. Desde a época da Anistia que as nossas reivindicações principais não tinham sido atendidas e não foram até hoje, mas pelo menos esse reconhecimento foi feito e foi fundamental que isso tenha acontecido, apesar das limitações. Fizemos muitas criticas á lei na época, mas ela foi muito importante. 

Sobre as limitações é que, primeiro ela não abrangia todos os mortos e desaparecidos. Eles escolheram do nosso dossiê de mortos e desaparecidos, e extraíram 136 nomes que o governo assumia a responsabilidade da morte. Mas assumia dizendo assim: fulano de tal, morreu no ano tal, de acordo com a lei tal, sem local da morte, sem local de sepultamento, sem esclarecimento algum. 

Em relação aos mortos dizia: aqueles que foram mortos em dependências policiais ou assemelhadas, e esse ou assemelhadas ainda foi uma grande conquista que nós tivemos depois de muita discussão com o Zé Gregório que na época elaborou a lei porque muitas pessoas foram assassinadas fora dos quartéis e órgãos de segurança e foram executadas. Não tiveram chance de defesa. No Brasil tinha pena de morte de civil por matar ilegalmente. Até foram condenados a pena de morte, mas não chegou a ser executado. Eles optaram por matar clandestinamente. A comissão dividia entre mais e menos mortos, aqueles que nós não tínhamos prova de que realmente foram assassinados sob tortura, a comissão não aceitava. E depois a gente dizia que isso não podia ser uma coisa que envolvesse os familiares e o governo porque a comissão só atendia requerimento dos familiares. Queríamos uma comissão que investigasse esse assunto e não atendesse apenas o requerimento dos familiares, porque isso não era uma coisa pessoal envolvendo os familiares e o governo. Foram crimes cometidos pelo Estado brasileiro que tinham que ser esclarecidos e não podiam depender de um requerimento familiar. Tinha gente inclusive que nem tinha família. Alguns casos nem chegaram a ser examinados porque as famílias não se apresentaram. 

Nós considerávamos que ela ficava muito aquém daquilo que a gente pretendia, e que principalmente os arquivos não iam ser abertos. Então nós é que tínhamos que provar em relação aos desaparecidos. A lei tomaria providências se nós apresentássemos indícios. O ônus da prova era dos familiares e continua sendo.   

Se no período da ditadura tivesse tido uma investigação dos crimes e uma punição dos responsáveis eles não estariam inspirando e alimentando os que foram cometidos depois, porque a impunidade dos crimes é impressionante.

BdFRS - Falando da Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, tu ficastes nela por 10 anos como representante dos familiares. Gostaria que nos falasse um pouco sobre ela?   

Suzana - A comissão existe até hoje, mas hoje em dia com o governo Bolsonaro ela é outra coisa. Eu sai em 2005 e a Comissão continuou existindo. Sai porque percebi que o governo Lula não ia adiante nas nossas reivindicações, não ia abrir os arquivos, não ia nos tirar o ônus da prova. Nós tínhamos uma outra expectativa. Na época nós fizemos uma ação política, achamos, com a minha saída, fiz uma carta enorme de demissão que eu nem sei onde foi parar porque eu fui desligada. 

Mesmo assim a comissão teve um papel muito importante exatamente por ter, muito além da questão dos desaparecidos, examinado caso a caso daquelas versões de suicídios, atropelamentos, tiroteios. Por exemplo, no tempo em que eu estive ali, eu acho que foram 130 casos que nós provamos que as versões oficiais de suicídios, atropelamentos e tiroteios eram mentirosas. Isso para nós foi fundamental. Houve alguns casos que nós mesmos mudamos a nossa compreensão do assunto quando nós fomos examinar os poucos documentos que nos foram abertos, do Instituto Médico Legal (IML), da polícia técnica, alguma documentação que a gente levantou, algumas fotos que apareceram nos arquivos do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) que foram abertos, nós conseguimos provar que as versões foram mentirosas. Essa acho que foi a parte mais importante da comissão, mostrar que aquilo que a gente dizia não era um discurso, havia provas concretas que isso tinha acontecido.             
              
BdFRS - Quantas famílias ainda buscam seus filhos, companheiros?

Suzana - Não tenho ideia, até porque a maior parte já morreram, não sei te dizer quantas, mas as famílias ainda buscam seus familiares. No dia 2 de dezembro, tivemos uma reunião com o Ministério Público de São Paulo em relação às ossadas da Vala de Perus, que só foi tomada alguma atitude quando a Ideli Salvatti, ministra dos Direitos Humanos, na época que foi criado o Centro de Antropologia Forense onde estão as ossadas de Perus e o governo tem tentado empatar essa busca. 

Agora, por exemplo, com essa ação da Volkswagen e o envolvimento da ditadura e que destinaram dois milhões de reais para identificação das ossadas de Perus o governo não está querendo, busca bloquear essa doação que está sendo feita para o Centro, especificamente para tratar da identificação das ossadas. 

Eu acho que a comissão foi muito importante nesse aspecto, de ter conseguido trazer essa história e de mostrar a responsabilidade do Estado nos crimes que foram cometidos, apesar de terem ficado muitas questões em aberto. 

No governo Lula em que a gente pensava que fosse ter uma evolução a única coisa que ele fez foi mexer na data da lei porque alguns argentinos tinham desaparecido no Brasil e ficaram de fora, porque a lei ia até 1979 e eles desapareceram em 1980. Também incluiu os mortos em passeata, casos de suicídio que nós não conseguimos provar que as pessoas tinham sido assassinadas. Foi só isso que o governo Lula ampliou. 

No governo Dilma foi votada a Comissão Nacional da Verdade (CNV), uma reivindicação de muitos anos, já que a Comissão Especial não teve poder de investigação e teve uma atuação restrita. Nós reivindicávamos uma Comissão Nacional da Verdade que também não foi o que a gente pretendia que fosse. Nós não fomos ouvidos na discussão da CNV, nem para a lei nem para sua execução. Inicialmente não éramos nem bem vindos nas dependências da Comissão, aos poucos acho que isso mudou. 

Acho que foi importante o trabalho da Comissão Nacional da Verdade pelo que teve de ampliação do entendimento nesse assunto para o Brasil todo, mas também ficou muito aquém, não evoluiu. No fundo o que a Comissão fez foi pegar esse trabalho Verdade e Memória e trazer para dentro dela e pouco evoluiu na investigação dos casos. Investigou alguns casos pontuais, mas não modificou. Eu, por exemplo, tenho até hoje um atestado de óbito de que meu marido se matou e a Comissão Nacional da Verdade não fez nada e a Justiça de São Paulo me negou por unanimidade mudar as circunstâncias da morte dele, e eu estou com recurso. Isso aconteceu ano passado, apesar de saber e ter prova de que ele foi assassinado. 

BdFRS - O relatório da Comissão Nacional da Verdade conclui que Luiz Eurico Tejera Lisbôa morreu em decorrência de ação perpetrada por agentes do Estado brasileiro, em contexto de sistemáticas violações de direitos humanos promovidas pela ditadura militar, implantada no país a partir de abril de 1964.  

Suzana - Recentemente teve um trabalho feito por alguns peritos, no programa Investigadores da História, do History Chanel, que teve treze capítulos. É um programa em que os peritos criminais investigam as circunstâncias da morte e provam como ele foi assassinado. Nem eu conhecia exatamente a circunstância, até hoje não sei como ele foi morto. Existe uma versão oficial de suicídio. Nesse programa eles remontam a cena para mostrar que o que havia ali, sangue na parede etc. e tal, e o tiro que foi dado nele, ele não podia estar deitado da forma como aparece, com uma arma em cada mão e que provavelmente ele foi morto quando sentaram ele.


O corpo de Ico foi localizado no Cemitério Dom Bosco, em Perus / Arquivo EBC

BdFRS - Falando sobre o teu companheiro Luiz Eurico, ele foi o primeiro cujo corpo foi encontrado no Cemitério Dom Bosco, em Perus. Gostaria que nos falasse um pouco desse período e da tua trajetória?  

Suzana - Eu nem sabia a data certa do desaparecimento de Luiz Eurico, sabia que era a primeira semana de setembro de 1972. No começo do ano de 1979, fiquei clandestina por muitos anos, depois do desaparecimento dele aqui no Brasil. Apesar dele fazer parte da lista oficial dos desaparecidos eu só enfrentei a busca oficialmente depois que eu voltei aqui para o RS, nas vésperas da Anistia, e encontrei informações sobre o cemitério de Perus que foi trazido por uma companheira que eu tinha conhecido nos anos de militância. Os irmãos dela tinham sido assassinados, os corpos não haviam sido entregues e ela tinha descoberto a existência do Cemitério Dom Bosco e fomos até lá no começo de 1979, março, abril daquele ano, e ele estava lá enterrado com o nome falso. 

Ficamos fazendo buscas para tentar localizar outros desaparecidos por nome falso, porque nunca tínhamos procurado em cemitérios. Não tínhamos ideia de que eles fossem fazer assim: fulano de tal que usava o nome tal, foi morto e eles enterravam com o nome falso que eles mesmos publicaram que a pessoa estava usando. Não foi o caso do Luiz Eurico, mas foi assim que nós chegamos no cemitério, por esse tipo de atitude dos órgãos de segurança. A gente acabou localizando o inquérito que diz que ele se suicidou em uma pensão no bairro Liberdade, em São Paulo. Eu fiz um processo de retificação de registro de óbito para Porto Alegre, mas a versão de suicídio permaneceu. Mesmo com o reconhecimento da responsabilidade do Estado na morte dele, através da lei 9.140, essa investigação não foi feita, porque a Comissão não investigou isso. 

A última vez que eu vi foi em 18 de julho de 1972, aqui em Porto Alegre. Estávamos clandestinos aqui na Capital. Eu fui para São Paulo, para voltar um mês depois, e nesse período ele desapareceu.

Sobre a minha militância, eu comecei aqui no Júlio de Castilhos em 1967, 1968. Me casei com o Luiz Eurico em 1969, no mesmo ano começamos a militar na Ação Libertadora Nacional (ALN), organização comandada pelo Carlos Mariguella. Nesse mesmo ano o Luiz Eurico e o Claudio Gutierrez foram condenados, em 1969, em um IPM (Inquérito Policial Militar), pela tentativa de reabertura do Grêmio do Julinho. Nós fizemos parte daquela primeira direção de esquerda da UGES (União Gaúcha dos Estudantes Secundários), no período 1967-1968, que era formada fundamentalmente por estudantes do Julinho. A direção da escola fechou o Grêmio, ele foi levar um abaixo-assinado para o diretor Antonio Magadan, que chamou o DOPS e eles acabaram presos e condenados. 

E passamos para a clandestinidade, como militante da ALN, até que ele desapareceu em 1972. Eu fiquei militando na organização até ela terminar em meados de 1974 e fiquei clandestina até final 1978. Retomei minha vida aqui e depois que eu localizei o corpo dele e desde esse momento me envolvi na questão dos familiares de mortos e desaparecidos e não parei mais, fiz parte da comissão federal, da comissão estadual

BdFRS -  Bolsonaro, quando deputado, colocou um cartaz na porta do seu gabinete dizendo "Quem procura osso é cachorro". Era um momento em que pais de desaparecidos percorriam a Câmara pedindo ajuda. Suzana, poderia dizer o que sentiu naquele momento.  

Suzana - Ele botou aquele cartaz para nós, a direção da Câmara tinha que ter tomado uma atitude contra ele pelo absurdo que ele fez. Ele posava na porta do gabinete dele em frente aquele cartaz dirigido a nós, e não tomaram nenhuma atitude. Ele sempre foi absolutamente agressivo conosco, sempre tratou esse assunto como se não fosse nada e assim que ele tem agido. Defende a figura de um torturado, o Ustra, declarado torturador pela Justiça brasileira. O que podemos esperar de um homem desses? 

Ele está destruindo a Comissão, tentando destruir tudo que a Comissão fez até hoje. Ele colocou pessoas na Comissão que são absolutamente contra tudo o que diz a lei. A lei determina que a Comissão seja constituída pelo presidente da República, mas com pessoas evidentemente que tenham a ver com o assunto que está sendo tratado, não uma posição contrária.        


Luiz Eurico Tejera Lisboa / Memórias da Ditadura

BdFRS - Com um contexto como esse ficará cada mais difícil continuar procurando pelos desaparecidos...
 
Suzana - Tem sido cada vez mais difícil porque o Brasil demorou para tratar dessa história. Desde a Anistia o Brasil virou as costas para esse assunto. A própria esquerda nos abandonou nesse assunto, porque tratar sobre isso é considerado revanchismo pela direita, e a esquerda nos dizia que estávamos cutucando a onça com vara curta e colocando em risco a incipiente democracia. Então que a gente tinha que se calar. Esse foi o comportamento geral, e aconteceu de 1979 até 1990, quando teve a abertura da Vala de Perus, no governo da Luiza Erundina. Completou 30 anos agora, e depois a Lei 9.140, foram momentos em que essa luta tomou outra proporção. Mas a questão nunca foi resolvida, as reivindicações que tínhamos em 1979, que era saber onde estão nossos familiares, quem matou, quem morreu, a punição dos responsáveis, que nos entreguem os corpos, nenhuma dessas reivindicações foram feitas. Nós, os familiares, é que localizamos meia dúzia de corpos, não passou disso, não fiz essa conta, mas depois do Luiz Eurico localizamos, talvez, meia dúzia. Alguns mais porque hoje a legislação mudou, naquela época separávamos entre mortos e desaparecidos. Mortos aqueles que os órgãos de segurança informaram a sua morte apesar de não terem entregue os corpos. 

Hoje a legislação mudou, se não tem corpo, o desaparecimento é um crime de lesa humanidade e é imprescritível. Nós não refizemos essa conta, quantos corpos não foram entregues dos que são considerados ainda desaparecidos. E nesse período o país foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e não cumpriu a sentença.                 
 
BdFRS - Como garantir reparação, a memória e justiça às vítimas do regime militar, no contexto atual que nós temos?

Suzana - A reparação é a verdade e a justiça que é isso que a gente quer. Nós queremos memória, verdade e justiça essa é para nós a reparação que o governo nunca fez, nunca investigou, nunca abriu os arquivos, desapareceram com os arquivos militares sem ter aberto. Na época que era o governo de Itamar que o Maurício Correa era ministro da Justiça os arquivos existiam, já não era mais ditadura, os arquivos militares existiam, tem relatório sobre esse assunto feito pelos ministros militares. Onde foram parar esses arquivos? Eles foram queimados, destruídos ou não, em plena democracia, e continuaram sendo destruídos, inclusive no governo Lula. 

Não sei se tu lembra, mas na base aérea de Salvador pegaram arquivos pegando fogo. Quem foi punido ali? Os repórteres que foram lá denunciar. Ninguém investigou que arquivos eram aqueles, como foram queimados. Eles deixaram destruir essa história.      

BdFRS - Ao que tu atribui o fato de não se querer revelar a história? 

Suzana - Acho que é medo, medo dos militares e falta de compromisso com a verdade, ninguém teve esse compromisso com a verdade. Nós criticamos tanto a lei do Fernando Henrique, mas eu acho que ela não teria sido feita. O Fernando teve uma atitude mais ousada do que os governos posteriores apesar de que poderia ter feito muito mais. Nós nunca fomos recebidos por nenhum presidente da República. Isso quer dizer uma falta de compromisso com essa história porque em todos esses anos ninguém nos recebeu para tratar esse assunto. Olha o que aconteceu em toda a América Latina e olha o que acontece no Brasil. 

Aqui quem anistiou os militares foi o STF porque a lei da anistia não dizia isso expressamente, isso foi um entendimento que resolveram ter a partir do momento que dizia que estão anistiados todos aqueles que cometeram crimes e conexos. E nesses conexos estariam incluídos os crimes da ditadura, mas isso não está explicito. E foram por exemplo, excetuados da Lei da Anistia os presos políticos, os que teriam cometido o que na época se chamava crimes de sangue, assalto, sequestro, mortes. Quer dizer, os nossos não foram anistiados, porque os torturadores foram. 

A Lei da Anistia foi tão capenga que depois paulatinamente outras foram complementando. E a pessoa tem que requerer sua anistia, os que não tiveram sua anistia publicada no dia da votação da anistia, tiveram que requerer. Você viu algum torturador requerer, não. Quem anistiou os torturadores foi o STF durante o governo Lula. 

BdFRS - Na próxima quinta-feira (10) é Dia Internacional dos Direitos Humanos fazendo um link com a lei 9.140, o que poderia ser dito. 

Suzana - Os crimes da ditadura inspiram e alimentam os que hoje são cometidos contra a população pobre, marginalizada, contra os negros, contra as lideranças políticas, como por exemplo, o caso Marielle. Esses crimes continuaram impunes e inspiraram outros a acontecer. A questão dos direitos humanos no Brasil nunca foi encarada como uma questão central. 

Se no período da ditadura tivesse tido uma investigação dos crimes e uma punição dos responsáveis eles não estariam inspirando e alimentando os que foram cometidos depois, porque a impunidade dos crimes é impressionante. Os caras que mataram o rapaz no Carrefour, olha a impunidade com que eles estavam contando com aquilo, mataram ele de uma forma cruel. E não foi o único caso, isso acontece todo dia porque eles acham que nada vai acontecer, nesse governo pior ainda, o pouco de garantia que se tinha foram sendo canceladas, o governo foi destruindo tudo o que foi conquistado. Ele (governo) está apostando na morte, que não lida com essa pandemia, com tantos mortos, e que foram capazes de fazer hoje (3), uma festa de Natal com 50 pessoas, crianças entre elas, sem máscara. Não vai ser responsabilizado por essas mortes nunca, será? Tanta gente que está morrendo, é uma revolta, fico impressionada com isso, nenhuma instituição é capaz de afrontar um criminoso desses que está na presidência.          

BdFRS - Dias melhores virão?

Suzana - Eu tenho que acreditar, porque o que me mantém viva nessa luta é a capacidade que eu tenho de me indignar, a cada dia eu me indigno mais ainda com os crimes que foram cometidos, com a pobreza, com a miséria, e eu tenho que acreditar que isso um dia vai mudar se não eu deixo de viver.     

O que eu acho fundamental é que as novas gerações prestem atenção e assumam isso que tem acontecido como sua história para impedir que aconteça. É impossível que a gente consiga construir um país em cima desses crimes insepultos, como se nada tivesse acontecido. Entender que esse assunto é uma luta de cada um de nós, para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça!


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Edição: Katia Marko