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Artigo | Sete pontos para entender as disputas geopolíticas por trás da vacina

A vacina é parte das disputas internacionais: a pandemia não é a origem de mudanças globais, mas vetor de aceleração

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
A vacina atual é a vacina possível: uma vacina com total eficácia, imunização duradoura e sem efeitos colaterais é produto de anos, ou até décadas, de pesquisa - Agência Brasil/Reprodução

A busca pela vacina contra o novo coronavírus é o assunto mais destacado do momento. Como qualquer tema relevante, é necessário um olhar mais aprofundado para entender as discussões e embates que surgem diariamente sobre o tema. Apresento aqui sete pontos para entender as disputas geopolíticas em torno da vacina contra a covid-19.

Ponto 1

A vacina é parte das disputas internacionais da atualidade: a pandemia do novo coronavírus não é a origem de grandes mudanças globais, mas sim, um vetor de aceleração de transformações que já estavam em curso. A principal delas, o fim da hegemonia norte-americana e a ascensão da China como carro-chefe da economia mundial.

Se por um lado, sob o governo de Donald Trump, os norte-americanos confiscaram EPIs e respiradores que passavam pelo seu território, se retiraram da Organização Mundial da Saúde (OMS) e tentaram precificar a vacina em US$ 20 sem terem o produto para oferecer; por outro, a China mostrou sua eficiência no combate ao vírus, enviou equipes de auxílio para todos os cantos do planeta e doou toneladas de insumos para os países mais pobres.

Frente à mercantilização da vacina, o Presidente Xi Jinping já declarou as vacinas chinesas como “bem público mundial”, garantindo o acesso dos países mais pobres gratuitamente ou a preço de custo.

Ponto 2

A vacina é uma mercadoria: muito da demonização aos esforços chineses e russos na busca pela vacina vem da pressão das grandes farmacêuticas ocidentais em evitar a concorrência e impor o preço que lhes convém ao imunizante.

Quanto mais vacinas eficazes estiverem disponíveis no mercado, maior a concorrência e a guerra dos preços. A vacina Sputnik V, criada pelo Centro Gamaleya na Rússia já foi precificada a 13 dólares, bem menos do que os US$ 21 da AstraZeneca e da iniciativa multigovernamental Covax Facility.

Ponto 3

A grande mídia é a melhor publicidade para as corporações farmacêuticas: os conglomerados midiáticos que controlam o fluxo de informações no Ocidente – replicados no Brasil por Globo, Folha e afins – apenas cobrem os esforços diários de empresas como Johnson, Pfizer e AstraZeneca/Oxford.

Suas vacinas nunca são apresentadas na imprensa como “a vacina americana” ou a “vacina inglesa”, mas sim, pelo nome de suas marcas – ao contrário dos trabalhos chineses, russos, cubanos, etc.

A exposição diária de suas marcas na grande imprensa é a melhor propaganda que as farmacêuticas poderiam ter, criando a falsa ideia de que estão à frente nas pesquisas e que somente suas vacinas seriam seguras. Não custa lembrar que no capitalismo financeirizado, grandes corporações – midiáticas ou farmacêuticas – são controladas pelo mesmo grupo minúsculo de pessoas, o 1% da população mundial.

Ponto 4

A vacina atual é a vacina possível: uma vacina com total eficácia, imunização duradoura e sem efeitos colaterais é produto de anos, ou até décadas, de pesquisa. A vacina que será entregue nos próximos meses por diferentes fabricantes é um esforço emergencial para passarmos pelo pior momento.

Provavelmente seu tempo de imunização será de apenas 1 ano, como a vacina contra a gripe, e seus efeitos colaterais, como febre e dor no braço no primeiro dia, serão comuns entre os que a receberem. A eficácia das vacinas atuais dificilmente alcançará os 100% nesse primeiro momento, mas serão o suficiente para proteger as pessoas mais vulneráveis e interromper cadeias de transmissão do vírus.

Ponto 5

Os ataques às vacinas não-ocidentais são completamente infundados. 

As “exigências” de publicações em “revistas especializadas” na Inglaterra e nos Estados Unidos para a comprovação da eficácia das vacinas chinesa e russa são apenas parte do jogo político-mercadológico em querer desacreditar a capacidade científica desses países.

Retorna-se à retórica da Guerra Fria de que os russos e chineses fazem tudo “às escondidas”, enquanto o Ocidente se apresenta como campeão da democracia e transparência – numa posição que guarda muito de racismo e eurocentrismo.

O Centro Gamaleya da Rússia possui tradição histórica na produção de imunizantes, e é responsável atualmente por pesquisas avançadas em vacinas contra o ebola e a MERS. A China já ultrapassou os EUA como país que mais publica artigos científicos no mundo há alguns anos. Não há razão para duvidar de suas capacidades de pesquisa e eficácia, muito menos nas ações de combate ao vírus, mais eficazes do que os países do Atlântico Norte.

Ponto 6

A capacidade de produção da vacina é uma questão de soberania mais do que de recursos: felizmente para a humanidade o novo coronavírus não parece ser um patogênico de difícil combate, o que levará a vacina a ser produzida e distribuída por diversas empresas/países ao mesmo tempo, única forma de responder à demanda existente, na casa das bilhões de doses.

Salta aos olhos, no entanto, como o Brasil, com instituições de primeira linha na área da saúde, como a Fiocruz e o Butantan, não consegue produzir sua própria vacina, ao contrário de Cuba, que sofre com o bloqueio estadunidense e dispõe de muito menos recursos. México e Argentina rapidamente fecharam acordos de compras com China, Rússia e outros países, garantindo acesso rápido e sem depender de um único fornecedor.

Para além do negacionismo do governo Bolsonaro – que sabotou as medidas de prevenção e, ao que parece, sabota a aquisição de vacinas – o Brasil lida com as consequências da destruição de seu patrimônio público, principalmente as universidades federais, que convivem com cortes sistemáticos de financiamentos para suas pesquisas e produção científica.

Em um mundo onde a ciência é a principal força produtiva, negar o financiamento adequado às universidades é também uma forma de negacionismo.

Essa autosabotagem ao país custa vidas e contrasta com a atitude de outras nações mais pobres que o Brasil, mas que são exemplo no combate à pandemia. Não à toa, Cuba escolheu um nome bem significativo para sua vacina: “Soberana”.

Ponto 7

O Brasil torna-se o maior exemplo da política genocida da extrema-direita mundial: com Donald Trump de saída e outros revezes mundo à fora, como na Itália, Bolsonaro torna-se o maior exemplo do que significa o fascismo do século XXI no poder. Um presidente que não só nega a gravidade da doença, mas que sabota determinantemente qualquer esforço de conter a pandemia e ainda tripudia dos mortos e da dor de milhares de famílias brasileiras.

Para a extrema-direita o caos, o desespero e a falta de alternativa por dias melhores não são um problema, mas uma oportunidade.

É nesse cenário incubador de ressentimentos, medos e negatividade que a extrema-direita acha terreno para se perpetuar e neutralizar oposições.

Não se pode esquecer que durante o pior momento da pandemia Jair Bolsonaro cogitou e alardeou realizar um golpe de Estado, não indo à frente ao perceber que as Forças Armadas não corroborariam com tal aventura. Agora politiza as instituições de vigilância sanitária para que as vacinas chinesas não sejam aprovadas, negando o direito dos brasileiros a ter acesso a um imunizante que ajudará a salvar vidas.

O fascismo, seja de qualquer estirpe, guarda esse pilar ideológico: o total desprezo pela vida alheia, tratada como uma simples estatística.

*Roberto Santana Santos é professor da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Políticas Públicas. Secretário-executivo da REGGEN-UNESCO.

Edição: Mariana Pitasse