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Direito é direito | Reforma agrária: da paralisação à criminalização dos sem terra

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Desde o ano passado, o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) paralisou os processos de desapropriação de imóveis para fins de reforma agrária - Marcelo Camargo/Agência Brasil
Em um país marcado pela concentração fundiária, a reforma agrária é a resposta necessária e urgente

O esvaziamento de direitos fundamentais e instituições por meio de interpretações restritivas da Constituição tem legitimado a paralisação de políticas públicas essenciais para a transformação social e a construção de uma sociedade mais justa e solidária.

O Judiciário, que poderia servir como uma barreira aos atos omissivos do Poder Público, não tem acompanhado o ritmo das diversas práticas que provocam a desestruturação dessas políticas, pavimentando o caminho para a normalização do cenário de implosão das normas constitucionais.

O tratamento da reforma agrária pelo governo federal é um exemplo. Desde o ano passado, o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) paralisou os processos de desapropriação de imóveis para fins de reforma agrária.

Por meio do Memorando-Circular nº 01/2019, o presidente da autarquia determinou às unidades regionais a suspensão das atividades de vistorias de imóveis rurais para fins de obtenção de terras. O orçamento da autarquia para o ano de 2020 reduziu a quase zero diversas funções importantes, o que é confirmado pela afirmação em relatório de que a obtenção de terras não é uma prioridade.

Outra medida adotada pelo Incra consiste na desistência de processos administrativos de desapropriação que estavam em andamento ou pedir a suspensão de processos judiciais. Segundo informação da autarquia ao Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), mais de 400 processos estão paralisados. Casos em fase final que aguardam apenas a imissão na posse não tiveram andamento.

Segundo o Incra, a medida é consciente: a reforma agrária não pode se limitar à obtenção de terras, devendo envolver a titulação de assentamentos existentes, a regularização fundiária e a operacionalização de créditos para os trabalhadores rurais.

Mas essa não é uma questão de escolha. Em um país marcado pela concentração fundiária, a reforma agrária é a resposta necessária para mudar um cenário de desigualdade.

Como demonstra o relatório “Terrenos da desigualdade: terra, agricultura e desigualdades no Brasil rural”, da Oxfam Brasil, enquanto as grandes propriedades correspondem a 0,91% do total dos estabelecimentos rurais brasileiros e abragem 45% de toda a área rural, os estabelecimentos com área inferior a 10 hectares representam mais de 47% do total de estabelecimentos e ocupam menos de 2,3% da área total.

Reforma agrária constitucional

A própria Constituição enfatiza o caráter obrigatório dessa resposta. Ela realça o caráter fundamental da função social da propriedade rural, sem a qual o imóvel não merece proteção, e destaca uma série de requisitos a serem cumpridos, como o  aproveitamento racional e adequado da terra, a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis, a preservação do meio ambiente, a observâncias das normas trabalhistas e o favorecimento do bem-estar de proprietários e trabalhadores.

Diante disso, o Estado tem o dever de identificar os imóveis que não cumprem a função social e, por conseguinte, aplicar a sanção correspondente.

A sanção consiste na desapropriação para fins de reforma agrária. Para dar conta de um país gigantesco como o nosso, é necessário conferir os meios e a estrutura necessários para realizar essa política pública. Ela compreende diversas etapas, mas deve começar pelas medidas preparatórias, como vistorias e avaliações técnicas, até culminar na constituição dos assentamentos.

Por ser um processo longo, é fundamental que haja uma continuidade das medidas adotadas ao longo de vários governos, sob pena de haver um desperdício de recursos públicos já destinados aos processos em curso e a frustração de expectativas dos trabalhadores rurais que aguardam há anos por um pedaço de terra. 

Desde a redemocratização, pelo menos 9.341 projetos de assentamentos foram implantados, beneficiando cerca de 1 milhão de famílias.

Esse número é importante, mas não foi capaz de alterar a realidade desigual do campo. A alegação de falta de recursos não resiste a uma análise ampla da matéria. Em primeiro lugar, porque há a necessidade de dar prioridade e seguimento, com o máximo de recursos disponíveis, aos processos em curso, por se tratar de uma política de Estado que não comporta discricionariedade ampla. Afinal, a efetivação da política, ainda que paulatina, não pode parar.

Em segundo lugar, porque a Constituição estabelece a necessária priorização da destinação de terras públicas para a reforma agrária (art. 188). Para obter essas terras, não precisa desapropriar, bastando conciliar a sua destinação com o plano de reforma agrária.

Segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), só na Amazônia Legal o governo federal deixou de adotar providências para a recuperação de mais de 1 bilhão em áreas irregularmente ocupadas, omitindo-se na retomada e destinação de imóveis rurais cujo valor corresponde a R$ 2,4 bilhões.

Enquanto isso, os movimentos sociais são tachados como terroristas.

Caso de polícia

Em setembro, o Secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento tratou o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) dessa forma ao abordar conflitos em assentamentos no sul da Bahia. Em seguida, o governo federal determinou a intervenção da Força Nacional de Segurança Pública na região, mesmo sem manifestação de anuência por aquele Estado.

A medida foi imediatamente rechaçada por ampla maioria do Supremo Tribunal Federal (STF). Apesar de o tribunal ter se limitado a abordar o conflito federativo subjacente ao caso, a decisão foi importante para indicar que a reforma agrária não é caso de polícia.

Reportagem da Folha de São Paulo apontou que a medida ilegal de envio da força nacional à Bahia custou pelo menos R$ 328 mil aos cofres públicos, descontado o pagamento com diárias dos agentes públicos. Um aparato de guerra foi montado, com a disponibilização de mais de 20.139 cartuchos de munição –  60% letais – e 197 armas – carabinas, espingardas e pistolas -, além de mais de 543 granadas. Em vez de buscar a solução pacífica para os conflitos no campo, o governo federal procurou acirrar os debates. Mas teve de recuar.

O tratamento da questão agrária como  “caso de polícia” é representativo da falta de políticas claras e da incapacidade de diálogo das instituições de governo com os diversos atores sociais. Nesse contexto de esvaziamento da política e criminalização dos movimentos sociais, a atuação do Poder Judiciário é fundamental.

A efetivação da Constituição está em jogo, tanto para os trabalhadores rurais que aguardam há anos a formação de seus assentamentos, quanto para aqueles que sonham em ver um país mais justo. Resta saber se conseguiremos conter a erosão a tempo de salvar a nossa lei fundamental.

Edição: Mariana Pitasse