Rio de Janeiro

Coluna

Nuestra America | Outros outubros virão para o Chile

Imagem de perfil do Colunistaesd
Na última sexta-feira (2), a Praça da Dignidade voltou a ser ocupada por manifestantes que reivindicavam as mudanças estruturais que em 30 anos não foram implementadas - PABLO COZZAGLIO/AFP
A emergência sanitária trouxe o agravamento das desigualdades que motivaram as mobilizações em 2019

Neste mês de outubro os protestos que tomaram as ruas de todo o país contra a manutenção do modelo neoliberal e que tiveram como síntese a luta por direitos até que “a dignidade seja um costume” completam um ano. 

A partir dessa jornada de protestos o povo chileno colocou em xeque o sistema político vigente, e pela primeira vez em quase 30 anos, a cidadania se organizou e exigiu o fim dos abusos em matéria de educação, saúde e previdência social e propôs uma Assembleia Constituinte. 

No próximo dia 25 de outubro, o povo chileno decidirá em um plebiscito histórico, fruto das mobilizações, se querem ou não um nova Constituição democrática, já que a atual carta magna do país ainda é herdada da ditadura militar (1973-1990). Também de que forma ela será escrita, se por meio de uma convenção constituinte - com 100% de candidatos eleitos pela cidadania para o processo constituinte, e que garante paridade de gênero -, ou se por meio de uma convenção mista -com apenas cinquenta por cento de candidatos eleitos pela cidadania e outros cinquenta por cento designados pelo Congresso.

A crise sanitária produto da pandemia afetou de forma significativa a onda de mobilizações sociais que vinham ganhando força em todo país e trouxe o agravamento da crise social e política já instalada, uma vez que o governo Piñera optou por privilegiar o modelo econômico a garantir direitos sociais essenciais aos trabalhadores e salvar a economia ao invés de investir na saúde. 

Salvar a economia não significou garantir o sustento dos mais pobres mas proteger os bancos, empresas e os grandes grupos econômicos.

Não por acaso o Chile foi o país com maior número de contagiados por milhão de habitantes do mundo e apontado em vários relatórios internacionais como um dos países que pior soube lidar com a pandemia. 

Essa conjuntura habilitou o governo a decretar estado de exceção por catástrofe, conferindo as forças armadas um papel central na gestão da crise, o que significou o retorno dos “toque de recolher” e maior repressão nas comunidades periféricas, que se mantém desde março. 

Apenas entre março e abril mais de meio milhão de postos de trabalho formais foram perdidos no Chile, empurrando a população para um cenário de pobreza, miséria e fome. Sem o apoio das autoridades, os/as chilenos/as tiveram que enfrentar a pandemia se cuidando entre si como podiam, enfrentando com muita organização cidadã o vírus em um país onde saúde também é privatizada. 

Leia também: Coronavírus ainda é um risco para 90% da humanidade, alerta OMS

No Chile, o sistema de saúde está regulado pelo mercado, o que significa que quem tem mais dinheiro tem melhor atenção médica, e que é necessário pagar para ser atendido no setor público. 

Neste contexto ressurgem as “panelas comuns” (que não se via desde a ditadura), comedores comunitários organizados a partir das comunidades, transformando o problema da fome em uma oportunidade de solidariedade e organização coletiva, uma estratégia dos setores populares para sobreviver, e que foram brutalmente reprimidas pelo governo chileno com a justificativa de zelar pelo “isolamento social”. 

A emergência sanitária trouxe, portanto, o agravamento das desigualdades estruturais que motivaram as mobilizações em 2019 e demonstrou que o mercado não soluciona todos os problemas, como pregavam os Chicago Boys, já que nesse contexto de crise o próprio mercado recorre ao Estado, pedindo auxílio para se recuperar às custas da piora da qualidade de vida dos trabalhadores. 

Por este motivo, vários protestos sociais voltaram a tomar a capital chilena, primeiro em zonas periféricas motivados pela fome enfrentada pelos setores populares que denunciavam que “o sistema chileno era mais cruel que o coronavírus”, e posteriormente na Praça Itália, epicentro das mobilizações do ano passado que foi rebatizada como Praça Dignidade pelos manifestantes. 

Os novos protestos se espalharam de Santiago para outras regiões como Antofagasta, Concepción e Valparaíso e provaram que a pandemia não conseguiu apagar a chama do descontentamento social no Chile.

Na última sexta-feira (2), a Praça da Dignidade voltou a ser ocupada por manifestantes que reivindicavam as mudanças estruturais que em 30 anos não foram implementadas. No enfrentamento entre as forças policiais e manifestantes, um estudante de 16 anos foi empurrado de uma ponte de 7 metros de altura por um policial, e se encontra hospitalizado em estado grave, gerando mais revolta e mobilização social, já que as autoridades novamente respaldaram a atuação da polícia e não condenaram o fato ocorrido.

Hoje os estudantes secundaristas voltaram a ocupar os metrôs, para celebrar um ano das evasões no transporte público contra o aumento da tarifa, que deram início a jornada de protestos sociais no país, com a consigna de que “o que começam os secundaristas, termina o povo organizado“.  Outros outubros virão para o povo chileno.

Edição: Mariana Pitasse