ENTREVISTA

Respeito ao ser humano deve ser pilar fundamental da segurança pública, diz coronel

Para Luís Fernando de Almeida, desarmamento da população é essencial para diminuição dos índices de violência

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Almeida é coronel da reserva da Polícia Militar de Sergipe e tem larga experiência na resolução de conflitos agrários a partir do diálogo - Foto: Arquivo Pessoal

A forma com que Luís Fernando de Almeida, coronel da reserva da Polícia Militar do Sergipe (PM-SE), construiu sua trajetória profissional o diferencia de seus pares. Na contramão do discurso punitivista, Almeida acredita que o diálogo, a defesa dos direitos humanos e o respeito à Constituição são imprescindíveis quando se trata da atuação e desenvolvimento de políticas na área da Segurança Pública.

Em entrevista ao Brasil de Fato, ele conta que o fato de ser negro e sentir o racismo na pele, e principalmente a atuação em conflitos agrários, foram elementos cruciais para sua formação.

A primeira experiência com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) foi marcante. Em 1995, Almeida foi convocado para atender um conflito por terras na Fazenda Santa Clara, no município de Capela, em Sergipe, que havia sido ocupada. Ao invés de convocar um aparato policial, Almeida foi ao local conhecer e entender a realidade daquelas famílias.

“Ouvimos barbaridades, coisas terríveis, daquelas pessoas que moravam lá há tantos anos. Para se ter uma ideia, o local onde eles dormiam era chamado de senzala e o capataz da fazenda era chamado de capitão do mato. Isso em 1995", lembra Almeida. Hoje, as terras da Fazenda Santa Clara são um assentamento. 

Ele conta que, a partir daquele momento, começou a negociar as desocupações envolvendo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e  buscando alternativas para as famílias. "Envolvendo o estado, o município, Judiciário, o Ministério Público. Fizemos uma trajetória sem confronto durante vários anos”, ressalta o coronel.

A postura se repetiu em dezenas de outros conflitos o que permitiu, segundo ele, a construção de uma relação respeitosa entre o movimento e órgãos de Segurança Pública do estado.

:: "Quanto menos armas, menos violência", diz coronel da PM :: 

Para coronel Almeida, frente aos alarmantes índices de violência, a diminuição de mortes da população e dos oficiais é um dos principais desafios da Segurança Pública atualmente.

Segundo a edição mais recente do Atlas da Violência, houve quase 58 mil homicídios no Brasil em 2018. Desses, 30.873 eram jovens - o que configura uma taxa de 60,4 mortes a cada 100 mil jovens.

Espero que a sociedade possa, cada vez mais, se organizar para evitar essa proliferação da violência por todo país

A juventude masculina brasileira, por sua vez, representa 55,6% das mortes entre 15 e 19 anos, 52,3% daqueles entre 20 e 24 anos e 43,7% dos que estão entre 25 e 29 anos

O acesso às armas, facilitado pelo governo Bolsonaro e uma das principais bandeiras do presidente e de sua família, também é destacado pelo coronel como algo extremamente preocupante. segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 71,1% dos homicídios registrados em 2018, o agressor usou uma arma de fogo para cometer o crime. 

“Se houver aumento de armamento, aumento de população armada, vai haver mais violência, isso é lógico. Um maior número de armas, de acidentes com armas, de homicídios, de vítimas de arma de fogo. Não tem como fazer uma equação diferente dessa. Espero que a sociedade possa, cada vez mais, se organizar para evitar essa proliferação da violência por todo país”, defende o coronel.

Para Almeida, que também atuou como secretário municipal de Defesa Social de Aracaju, “o princípio norteador da Segurança Pública, um pilar que é básico, é o respeito às leis. O respeito à Constituição e às garantias individuais nelas contidas. O respeito ao ser humano, a não discriminação por origem e por raça”.

:: O que está por trás da truculência da Polícia Militar? ::

Os problemas da segurança pública serão tema da próxima aula de um curso on-line promovido pelo Projeto Brasil Popular, que tem como propósito discutir as saídas para a crise brasileira. As atividades tiveram início em 25 de agosto e ocorrem todas as terças-feiras, às 19h. 

Confira a entrevista na íntegra

Brasil de Fato: Quais são os principais desafios na área da segurança pública que enfrentamos hoje?
 
Coronel Luís Fernando de Almeida:
Os desafios são imensos. Começaria pela necessidade urgente de diminuição de mortes, tanto de pessoas nas comunidades mais carentes, principal local onde isso ocorre, como também de policiais. O retorno a uma política em que a legislação impere e os procedimentos gerem prisões para aqueles que infringirem a lei.

Concomitantemente, quem está infringindo a lei vai lidar com a polícia, que é responsável por combater e inibir essas práticas, e também terá a certeza que, ao ser presa, terá seus direitos garantidos, e, portanto, não tem porque enfrentar a polícia. O que leva uma disputa de guerra, que não é o que nós queremos.
 
Segundo a edição mais recente do Atlas da Violência, houve quase 58 mil homicídios no Brasil em 2018. Uma taxa de 27,8 mortes por 100 mil habitantes. O que esses dados revelam sobre o Brasil? Quais políticas públicas podem ser desenvolvidas para evitar que esses números cresçam?

O Brasil tem índices alarmantes de mortes no confronto policial, no confronto entre facções criminosas e um índice altíssimo de armas, armas de guerra. Tivemos mais mortes do que na Síria e esse é um dado muito triste. Mata-se muito nesse país.

A quantidade de armas é algo extremamente preocupante. Sabemos que há uma facilidade para o contrabando de armas no país e isso tem que ser combatido de forma muito séria, ao invés de aumentar o número de armamento existente.

Uma das políticas públicas que deveriam ser implementadas para que a gente diminuísse esses índices alarmantes que temos é uma política de desarmamento das pessoas que infringem a lei, das pessoas que estão envolvidas no crime organizado, uma fiscalização mais rígida em relação às fronteiras. 

Sabemos os lugares de onde vêm essas armas. Um trabalho maior de inteligência para que toda operação seja feita se for estritamente necessária para a prisão de pessoas que têm mandados judiciais.

E que essas prisões sejam efetuadas da melhor maneira possível, com pessoas extremamente preparadas para a ação, com o grau mais baixo de letalidade possível. Isso não se faz sem um trabalho muito forte de inteligência, muito coordenado. Se há um risco para a população civil, é melhor que não se faça esse tipo de operação.
 
Quais as principais vítimas desse cenário de violência e intolerância que se acentuou nos últimos anos?

O que as pesquisam e os dados nos mostram é que a população jovem, negra, masculina e periférica é a mais afetada. Houve redução no número de mortes de mulheres brancas, mas mulheres negras morrem mais. Sem dúvida alguma, é um retrato muito triste do país onde a população jovem e negra esteja sendo vítima dessas mortes, o que revela o preconceito.

O ano foi muito atribulado, inclusive com a saída de Moro e chegada de André Mendonça no ministério da Segurança Pública. Como avalia essas mudanças e o olhar do governo Bolsonaro para a área?

Essa questão da mudança do ministro da Justiça e Segurança Pública, para essa questão da violência localizada contra as populações mais pobres, ao meu ver, não faz grande diferença. Foi uma mudança com influências, questões e consequências políticas para o país como um todo. Mas a questão da violência é muito anterior, é arraigada. Por ser algo antigo, que piorou nos últimos anos, o enfrentamento é bem mais difícil. Não é esse tipo de mudança que vai transformar a situação.

A partir do que acontece hoje, como imagina os índices da área da Segurança Pública nos próximos anos?

Acredito que se houver o aumento de armamento, o aumento de população armada, vai haver mais violência, isso é lógico. Um maior número de armas, de acidentes com armas, de homicídios, de vítimas de arma de fogo. Não tem como fazer uma equação diferente dessa. Espero que a sociedade possa, cada vez mais, se organizar para evitar essa proliferação da violência por todo país.

A atuação violenta da polícia militar denunciada com muito mais frequência nos últimos anos. Como enxerga esse processo e quais são as origens dessa lógica tão presente na atuação da PM? 

As polícias militares são um recorte da sociedade. A sociedade brasileira, ao contrário do que alguns pregam, é uma sociedade violenta. O policial é um extrato dessa sociedade e que reflete mais violência se tiver uma formação pior, uma formação ruim, mas isso tem muito a ver com a índole de saber o que é certo e errado, e escolher o que é certo e o que é errado.

Não é uma questão apenas das policiais militares. É uma questão de toda a sociedade, de todo um aparato de Estado. Uma questão de impunidade, uma questão de política que dá proteção e encobre ações gerando uma sensação de impunidade. Algo muito mais complexo.

Mas é claro que uma mudança de mentalidade, uma mudança geral, poderia ajudar tanto no campo da formação como no campo da atuação. Entretanto, volto a dizer, é reflexo do que é a sociedade. Com todas as origens, com a visão preconceituosa, escravocrata. Isso está refletido nos dias de hoje e demandará tempo e muita vontade para que se mude.
 
Há exemplos e experiências nas áreas da Segurança Pública que devem ser seguidas em algum estado ou cidade do país? O Rio de Janeiro, por exemplo, pode ser considerado um exemplo do que não se fazer nessa área?

Temos exemplo de atuações das polícias, tanto civil quanto militar, em vários locais do país. Exemplos de políticas comunitárias ou de proximidade, como queira chamar, onde há uma maior interação entre os órgãos de Segurança Pública, os agentes e a população. Onde, através desse convívio diário, melhora o relacionamento, a atuação e o respeito de ambos os lados. 

Não quero estigmatizar o Rio de Janeiro. É uma cidade complexa, com problemas históricos de habitações e políticas públicas que não atendem a população. As pessoas que moram nas comunidades são pessoas, em sua grande maioria, de bem. Temos, pela ausência de Estado, o aproveitamento da criminalidade. Seja ela no campo do tráfico ou no campo das milícias onde essa população fica vulnerável.

Não é apenas o Rio de Janeiro, mas não podemos deixar de reconhecer que a violência no Rio é muito alta, muito latente, muito visível. E também entendermos que não é apenas uma questão dos números em si, mas também que, hoje em dia, tudo tem mais visibilidade.

Ao mesmo tempo que tomamos conhecimento porque cada pessoa tem uma câmera na mão para filmar os erros e desvios, esses crimes, temos também uma sensação de insegurança cada vez mais crescente, justamente com a publicização cada vez maior.

O que te levou a ser “um ponto fora da curva” e se aproximar dos direitos humanos? 

Não me vejo tanto como um ponto fora da curva. Mas acredito que um pouco da formação humana e trajetórias que minha carreira tomou foram responsáveis por uma visão mais aberta e mais ampla da questão humana. Formação familiar também. Pela minha mãe, pela minha família de forma geral. Meus primos, meus irmãos, o convívio diário. Ser negro é algo que ajuda. Sentir na pele essa questão do preconceito. 

E sem dúvida alguma, a atuação nos conflitos agrários, que de certa forma foi algo pioneiro. Começamos em 1995, entramos em na Fazenda Santa Clara, no município de Capela, em Sergipe, que estava ocupada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra e lá ouvimos barbaridades, coisas terríveis, daquelas pessoas que moravam lá há tantos anos.

Não há saída para humanidade sem mais respeito, sem distribuição de renda. Sem mais humanidade. É o que a gente espera, o que a gente sonha e pelo que a gente luta

Para se ter uma ideia, o local onde eles dormiam era chamado de senzala e o capataz da fazenda era chamado de capitão do mato. Isso em 1995. A partir dali começamos a negociar as desocupações buscando algumas alternativas para as famílias, envolvendo o Incra, envolvendo o Estado, o município, Judiciário, o Ministério Público. Fizemos uma trajetória sem confronto durante vários anos.

Morreu uma pessoa na Fazenda Santa Clara, um ocupante, José Emídio, que foi assassinado pelo capataz. Desse assassinato, gerou-se uma reação dentro da Segurança Pública que melhorou muito mais nossa atuação na defesa dos movimentos, dos direitos das pessoas, principalmente as mais necessitadas. E uma relação muito boa entre a Segurança Oública, a Secretaria de Segurança, de um modo geral, e o movimento sem-terra no estado de Sergipe.

Na sua opinião, quais devem ser os principais pilares e objetivos da área da Segurança Pública?

Para mim, o primeiro princípio norteador da segurança pública e um pilar que é básico é o respeito às leis. Respeito à Constituição e às garantias individuais nelas contidas. O respeito ao ser humano, a não discriminação por origem, por cor, por raça, pela roupa que veste. Pelos costumes culturais, pela música que houve, pelo que gosta de dançar.Tem que ser respeitada a pluralidade que existe em nosso país. Isso já seria algo fantástico. Se a atuação fosse pautada nos direitos do cidadão.

Para além disso, na formação dos policiais, uma conscientização de que somos todos seres humanos. Que todos precisamos respeitar as seres humanos. Que há limite nos nossos direitos impostos pelos direitos dos outros.

E que não há saída para humanidade sem mais respeito, sem distribuição de renda. Sem mais humanidade. É o que a gente espera, o que a gente sonha e pelo que a gente luta. Um país e um mundo cada vez melhores, onde cada pessoa tenha direito à dignidade. Não é para ter miserabilidade, fome. Esse planeta pode sim sustentar todo seu povo. Alimentar, educar e dar moradia. A questão é que, infelizmente, o sistema que vivemos é o de acúmulo, o de "quanto mais, para mim, melhor e o outro que se dane". É o egoísmo. E o que colhemos é o que estamos vendo no mundo como um todo.

Edição: Leandro Melito