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A chuva de um milhão de mortos

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Quatro mil pessoas já haviam morrido no mundo, o presidente afirma, durante bate-papo descontraído com Donald Trump em Miami, que a covid-19 “é uma fantasia” - Alan Santos / Fotos Públicas
E daí? Lamento. Quer que faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre

Nesta semana, o mundo atingiu um número terrível: um milhão de mortos pela covid-19. Mais de 33 milhões de pessoas foram infectadas. Pior: existem previsões de que, até o final de dezembro, serão dois milhões de mortes.

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No Brasil, a contagem se aproxima das 150 mil vidas perdidas e cinco milhões de casos confirmados. Há projeções indicando mais de 180 mil mortes até o final do ano. Aqui, as baixas na linha de frente contra o coronavírus já levaram quase 700 enfermeiras(os) e médicos(as).

Como chegamos a isso? É certo que, pela sua virulência e potencial de contágio, a pandemia faria muitas vítimas. Mas tantas assim? Cabe aqui lembrar onde começamos a nos perder. Uma viagem ao passado recente irá nos aclarar a memória.

“Não há motivo para pânico”. Frase de Jair Bolsonaro em 6 de março. Quatro dias depois, quando mais de quatro mil pessoas já haviam morrido no mundo, o presidente afirma, durante bate-papo descontraído com Donald Trump em Miami, que a covid-19 “é uma fantasia”. E emenda: “Não é tudo isso que a grande mídia propala”.

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No dia seguinte, 11 de março, a Organização Mundial da Saúde comunica a pandemia do coronavírus. Bolsonaro informa que vai ligar para o ministro da Saúde, Luiz Mandetta. Mas repara que ouviu dizer “que outras gripes mataram mais do que esta”.

Estamos no dia 15 de março. Oficialmente, estamos na mira do vírus. Mas o que diz Bolsonaro? “Histeria”, assim ele classifica a reação à doença no microfone da rádio Tupi. “Não podemos entrar em uma neurose como se fosse o fim do mundo”, sugeriu.

Mais cinco dias e vem a famosa definição da covid-19 como “uma gripezinha”. Em seguida, afirma que “brevemente o povo saberá que foi enganado por esses governadores e por grande parte da mídia nessa questão do coronavírus". No dia 26 de março, quando o país já registra 77 óbitos, surge mais uma frase lapidar. Pretendendo descrever o brasileiro como uma fortaleza de saúde diz que “ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha, tá certo? E não acontece nada com ele”.

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Em 12 de abril, o Brasil atinge 1.200 óbitos. "Parece que está começando a ir embora essa questão do vírus”, especula em conversa com líderes evangélicos.

No dia 20 do mesmo mês, Bolsonaro começa a se preocupar e irritar com o questionamento provocado pela pandemia. “Não sou coveiro, tá?”, retruca irritado com uma pergunta sobre as vidas ceifadas.

Em 28 de abril, data em que o Brasil ultrapassou a China em número de mortos, Bolsonaro saiu-se com uma frase displicente e desumana. "E daí? Lamento. Quer que faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre", respondeu.

Bolsonaro usou uma metáfora interessante mais de uma vez. No dia 1º. de abril – data bastante apropriada – comparou o vírus a uma chuva. O sujeito sai, molha-se mas não morre afogado. “Em alguns casos, lamentavelmente, haverá afogamento”, disse.

Se algum dia tivermos um improvável Tribunal de Nuremberg da pandemia, sabemos quem terá lugar certo no banco dos réus. Lá, poderá tentar explicar porque, sabotando as recomendações de seu próprio governo, incentivou extremistas a invadirem hospitais, atacou prefeitos, governadores, o STF e seus próprios ministros da saúde, pregou o fim do isolamento social, a reabertura do comércio, mandou produzir e distribuir a cloroquina, droga de perigosos efeitos colaterais e rejeitada pela ciência, como solução milagrosa.

E poderá explicar melhor às famílias de mais de 141 mil brasileiros e brasileiras porque coube a eles se afogarem nessa tempestade que se abateu sobre o país.
 

Edição: Rodrigo Chagas