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‘Com o pé no galpão e a cabeça na galáxia’ apresenta clássicos do Tambo do Bando

Com mais de 30 anos de estrada, grupo lançou álbum duplo com músicas dos LPs “Ingênuos Malditos” e “Tambo do Bando”

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Show no Theatro São Pedro sem ensaios, sem abraços, sem público presencial, mas com a garra e a intensidade que só a arte é capaz de propiciar - Cláudio Fachel

O Tambo do Bando fez parte da minha vida a partir do início da década de 1990. Me emocionei ao escutar o CD duplo ‘Com o pé no galpão e a cabeça na galáxia’. Como disse o jornalista Juarez Fonseca “já estava tudo lá, esses 30 anos apenas os amadureceram”.

O lançamento do CD fez parte das comemorações dos 30 anos do grupo em dezembro de 2016. Mas agora durante a pandemia foi novamente apresentado em um show no projeto Sarau do Solar Especial, no dia 31 de julho, em homenagem aos 162 anos do Theatro São Pedro. Em formato virtual, a live teve 12.113 visualizações.

Como lembra a jornalista e produtora do grupo, Dinorah Araújo, tudo começou na primavera de 1986, em Porto Alegre, com a reunião de cinco amigos, liderados pelo jornalista, escritor e letrista Luiz Sérgio Metz (Jacaré), falecido em 1996. “Antes de chegarem à Capital eles moraram em Santa Maria, onde se conheceram. Vinham de várias regiões do estado, mas tinham em comum um grande sonho: fazer uma música regional diferenciada, ‘com o pé no galpão e a cabeça na galáxia’, como definiu um dia Jacaré.”


Irreverência do Tambo do Bando marcou um novo tempo nos festivais nativistas / Divulgação

A primeira formação da banda foi com Beto Bollo, Carlos Cachoeira, Jacaré, Texo Cabral e Vinícius Brum. Logo em seguida, entraram o baterista Kiko Freitas e o compositor Marcelo Lehmann. Kiko participou do primeiro disco e depois saiu. Marcelo permanece no grupo até hoje. O show de estreia foi em Porto Alegre, em 1987, no Teatro de Câmara, e trouxe ao grupo um novo integrante, o ator e diretor cênico Marcos Barreto (1959-2011).

O escritor, crítico de literatura e professor universitário Luís Augusto Fischer assim define o Tambo do Bando: “O Tambo quis dizer o que tinha a dizer para ouvidos talvez difíceis, mas justamente por isso estimulantes. As formas vocais, os arranjos, mesmo as melodias, e mais ainda os versos de suas canções abriram espaço concreto para falar de integração sul-americana, de juventude, de vida em trânsito para as cidades, de tecnologia, de democracia, de vida popular, enfim de uma série de temas urgentes para quem queria mudança, mas sem perder o pé, que devia continuar firme no âmbito da cultura popular, especialmente a gauchesca.”


Foi o grande vencedor de vários festivais, entre eles o Festival Sul-Americano de Nativismo Musicanto, de Santa Rosa (1988) / Divulgação

Para o jornalista e crítico musical Juarez Fonseca, o Tambo do Bando foi um jorro de novidade nos festivais nativistas. “Mesmo considerando que o Tambo do Bando tenha redimensionado a abrangência do nativismo, o certo é que ele ultrapassou esse limite sem perder de vista o ponto-de-partida, o Rio Grande do Sul – ou, talvez melhor, o Sul. Ouvindo o primeiro disco, e o segundo e último, de 1992, nos damos conta de que talvez o grupo tivesse nascido antes do tempo. O ambiente musical gaúcho de 30 anos atrás, particularmente aquele em que o Tambo procurava se inserir, era inóspito para ele.”


O jornalista, escritor e letrista Luiz Sérgio Metz (Jacaré) marcou a fundação do grupo musical Tambo do Bando / Arquivo pessoal

O jornalista e professor universitário Pedro Luiz S. Osório lembra o importante papel de Luiz Sérgio Metz, conhecido como Sérgio Jacaré, no grupo. “Principal letrista e principal mentor do grupo, desempenhou um papel relevante na trajetória do Tambo, beneficiando-o também com seu prestígio pessoal decorrente da sua produção literária. Esta, embora precocemente interrompida, também é apontada, como um marco da literatura rio-grandense. Este conjunto de características soma-se à obra musical do Tambo do Bando, até hoje imbatível. Suas melodias e arranjos, sua interpretação inovadora e liberta de trejeitos anacrônicos, sua capacidade de reconhecer, em aspectos particulares da vida regional, suas dimensões universais e, assim, oferecer novas abordagens e relatos sobre essa vida, abrindo um leque diferenciado de explicações e percepções sobre o mundo em mudança – isto tudo eleva o Tambo do Bando ao nível da arte, ao patamar das coisas que não perecem e guardam valor humano talvez pela eternidade. Mas que não estão imunes ao esquecimento. Urge preservá-las.”

Confira entrevista com Carlos Leandro Cachoeira.


Carlos Cachoeira (voz e violão) / Cláudio Fachel

Brasil de Fato RS – Conheci o Tambo do Bando no início da década de 1990, quando escutava os vinis Ingênuos Malditos (1990) e Tambo do Bando (1992). Me emocionei ao escutar essa linda regravação “Com o pé no galpão e a cabeça na galáxia”. E concordo com o Juarez Fonseca quando diz que “já estava tudo lá, esses 30 anos apenas os amadureceram”. O peso da história é um condicionador? Como é ser um grupo com 30 anos de estrada?

Carlos Leandro Cachoeira - Legal dar essa entrevista para o Brasil de Fato. Olha, o peso da história eu acho que é um condicionador de responsabilidade ou de mais responsabilidade, porque a gente fez esses dois discos que tu acabaste de me dizer que escutou e gostou, lá no final de 1980 e começo da década de 1990. E bueno, de lá pra cá se passaram 30 anos, ano que vem é 35 anos. Acho que tem um peso na responsabilidade, e a gente fez essa live lá no Theatro São Pedro, onde a gente não podia ensaiar e não ensaiamos, então sempre é uma apreensão quando a gente vai fazer show, ainda mais assim sem ensaio, no fim deu tudo certo. 

BdFRS – Como surgiu o Tambo do Bando?

Cachoeira - A gente já se conhecia, todos passamos por Santa Maria. Teve uma época que eu vim morar aqui em Cachoeira, morei pra fora, e o Jacaré morava também aqui em Cachoeira, numa distância duns 40 quilômetros. Nos encontramos numa ferragem, e a gente tinha uma coisa em comum, a gente gostava de entrar nas ferragens pra olhar as ferramentas. Nos encontramos e, bom, começamos a nos encontrar todas as quintas, pra fazer alguma coisa e tal. E aí, passados dois anos e meio, três anos, o Jacaré foi pra Porto Alegre. E passou mais um ano eu fui pra Santa Maria. Morei em 1985 em Santa Maria, e no começo de 1986 eu fui pra Porto Alegre. Eu e o Beto Bolo que também estava em Santa Maria.

Em Porto Alegre já estavam o Jacaré e o Vinícius, todos envolvidos com música. O Jacaré trabalhava no Sindicato dos Bancários, e já escrevia há um bom tempo. E nos encontramos lá, e o Jaca que teve a ideia de fazer um grupo. Lembro ele falando: “Vamo, vamo, vamo pegar essas questões, e essa música tradicionalista, ou nativista, ou regional, sei lá qual é mesmo, e vamo botar nossas ideias”. E nós já tínhamos alguma bagagem também, todos tinham passado por festivais. E aí resolvemos fazer o grupo.

Logo depois a gente se encontra com o Texo Cabral, e aí sim se fecha o grupo mesmo. E no final de 1986 a gente resolveu dar uma data de fundação do grupo, que é 13 de dezembro de 1986. Assim surgiu o grupo, claro que não foi só isso, teve muitas outras coisas, a necessidade de falar dos problemas sociais, enfim. Eu acho que juntou a fome com a vontade de comer. E a gente sempre teve um cuidado de não cair num comum, então a gente começava a fazer uma música com várias influências, nacionais e internacionais, cada um com a sua e todos em prol dum lance que a gente tava começando.

A gente se reunia bastante, até que fomos pra um Musicanto em 1986 mesmo, acho que foi com Bombo da Noite. E aí quando a gente voltou do Musicanto, decidimos formar o grupo. Depois no ano seguinte, o meu irmão Marcelo Lehmann, que morava no Rio de Janeiro e vem pra Porto Alegre pra passar uns dias, nos acompanha num outro Musicanto e acaba ficando em Porto Alegre e se integrou também ao Tambo. Então era eu, o Vinicius, o Beto Bolo, o Texo Cabral, o Marcelo Lehmann e o Sergio Metz, o Jacaré.


Tambo do Bando fez sua primeira participação no Musicanto em 1986 / Divulgação

BdFRS – O Tambo do Bando tinha nas letras do Luiz Sérgio Jacaré Metz um forte referencial literário. Como foi ou está sendo se reinventar com a partida do Jacaré?

Cachoeira - Com a partida do Jacaré ficou muito difícil, porque o Jacaré era o amálgama, era o que unia o grupo, ele que sempre nos incentivava, enfim, botava lenha na fogueira. O Jacaré era um cara que aglutinava, nos aglutinava. Todos nós tínhamos participações em festivais, com outros parceiros e tal. Eu não sei se a gente consegue reinventar o grupo sem o Jacaré, mas a gente continuou. Esse álbum dos 30 anos não é gravação, ele foi remasterizado, pelo exímio Marcos Abreu, e a gente lançou os vinis em CDs. Cada um mais ou menos seguiu suas carreiras solos, tanto é que todos temos nossos discos individuais, uns com mais, outros com menos, enfim.

BdFRS – Quando o Tambo do Bando subia a um palco de um festival sempre havia a expectativa de algo diferente. O que é diferente hoje na música do Rio Grande do Sul e do país?

Cachoeira - Acho que o diferente hoje na música, do Rio Grande do Sul e do país, é uma invasão, é uma falta de respeito, é um desrespeito à arte e a cultura. Essa invasão de sertanojo e funk, que, olha, sinceramente me envergonha esse tipo de música, porque não tem nada, é uma coisa nojenta. Mas tem um pessoal que resiste, tem uma gurizada nova aí chegando através da internet. Tá chegando com força, e essa é uma esperança que a gente possa passar por essa fase tão deprimente.

Eu não entendo como é que nós fomos chegar nesse ponto. Claro que depois da ditadura, sucatearam o país em termos de educação, e cada vez vieram sucateando mais, e aí numa época recente nós conseguimos dar uma respirada. E agora, caímos numa vala, num poço que não tem fundo, uma coisa terrível. Eu sinceramente boto fé nessa gurizada nova, que tá chegando aí, com uma proposta de música, de escutar música, também pra dançar, mas uma coisa que tem a ver com arte, não é uma coisa que tem a ver com modismo, com essa nojeira que anda no país.


O Tambo do Bando inovou a música do Rio Grande do Sul ao unir sonoridades e linguagens universais à temática nativista / Genaro Joner

BdFRS – O país e o nosso estado viveram com o fim da ditadura em 1984 uma efervescência cultural com o surgimento de muitos grupos, não só musicais, mas no teatro e no cinema. Era um ambiente que propiciava o nascimento do Tambo do Bando, por exemplo. Como hoje, neste estado de coisas que vivenciamos no país, com uma extrema-direita no poder, vocês enxergam a sua existência? E como vocês veem a necessidade de uma arte mais engajada para enfrentar os tempos atuais?

Cachoeira - Pois é, eu na realidade estou bem desesperançoso com essa coisa que tá acontecendo, esse buraco, esse esgoto que o país se meteu, com essa turma de mentecaptos. Eu acho que a gente vai continuar fazendo, ainda mais agora em época de pandemia, a internet que salva. Agora, eu vejo assim, se ninguém fizer nada pra barrar essa coisa que tá aí, e parece que fazem o que querem, ninguém diz nada. Se não barrar isso aí, vai ficar cada vez mais difícil de fazer alguma coisa, porque essa extrema-direita é uma loucura. Eles são uns extremistas burros, ignorantes, que não querem saber. Tão entregando o país, tão nos entregando a preço de nada.

Não sei, eu estou desesperançoso, mas vejo que tem gente que tá fazendo coisas. Não temos uma força, talvez como a gente tinha naquela época pós-ditadura e mesmo durante a ditadura, que as pessoas estavam engajadas nessa luta pra combater a ditadura, parece que agora tá difícil, ainda mais com a pandemia, porque reunir tá difícil. Acho que vamos ter que ir todo mundo pra rua, nós já estamos velhos, tem que ser essa gurizada. A esperança é a gurizada, ir pra rua, de máscara, tentar acabar com isso.

Me emociona essa porra, me emociona porque a gente tá numa situação que tu vês as coisas, ninguém faz nada, parece que tá tudo normalizando, uma coisa que é totalmente anormal. Eu não sei nem o que te dizer, vamos continuar fazendo o que a gente sempre fez, do jeito que a gente pode. Tomara que essa gurizada, sabe, enfie o pescoço pra fora dessa sanga e consiga sair e fazer alguma coisa pra reverter isso aí. E outra, né, educação, educação e educação. Isso sempre foi, porque nós estamos nessa situação porque nunca nos deram educação, porque a cultura depois vem, se tiver educação.

Porque essa gurizada que tá aí, é uma gurizada internet, eles são antenados, eles tão pesquisando, não é fácil enrolar uma gurizada dessas. Só que na realidade por enquanto são poucas pessoas que têm esse acesso. Eu só vejo essa mudança, se alguém, a justiça brasileira que é uma lesma, né tchê, que tá fazendo vistas grossas parece, ninguém faz nada pra barrar esse absurdo que tá aí. Eu só vejo se barrarem isso aí, muita educação, sabe, coisas de médio e longo prazo, e coisas de curto prazo pra poder reverter essa desgraça toda que nós estamos metidos.


Nas projeções do show virtual, imagem da vereadora carioca Marielle Franco, assassinada em 14 de março de2018 / Cláudio Fachel

BdFRS – Com o pé no galpão e a cabeça na galáxia, quais as projeções para esse trabalho? Já tem projetos futuros?

Cachoeira - Bom, eu espero que passe logo essa pandemia, e que a gente possa ir pra um teatro com público, e ainda alimentar esse álbum, fazer alguns shows com ele. E tem projeto de um disco novo que era pra ter saído inclusive o ano passado, aí nos atrasamos um pouco e depois veio essa, essa coisa que tá aí, essa pandemia. Mas a ideia é agora fazer um disco novo. Tem algumas coisas do Jacaré que cada um de nós tem, que vai ter coisas assim, não digo inéditas, mas que participaram de festivais, e que a gente não chegou a gravar em algum disco nosso. A ideia é fazer um disco novo, com músicas inéditas. E, enfim, tomara que acabe logo essa pandemia, e que o país tenha alguém que possa fazer alguma coisa contra isso tudo que tá aí. E além de músicas inéditas que não participaram de disco nosso, do Jaca, claro, tem composições de todos, do Vinicius Brum, tem coisas minhas e do pijama, do Marcelo Lehmann, enfim. Tem músicas com letras nossas, e é isso, nós vamos tentar fazer um disco que chegue aos corações.


Álbum duplo ‘Com o pé no galpão e a cabeça na galáxia’ / Divulgação

Edição: Marcelo Ferreira