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Brasil em chamas, um projeto de 200 anos

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Na Amazônia, o Inpe já registrou mais de 20mil focos de incêndio apenas neste mês. É um território entregue aos grileiros, madeireiros, garimpeiros e outros picaretas que o bolsonarismo louva - Bruno Kelly / Amazônia Real
No segundo e funesto ano de Bolsonaro no poder, os incêndios aumentaram 210%

No remoto ano de 1823, um brasileiro mais conhecido pela atuação política do que pela militância ambiental, previu que o Brasil, dois séculos mais tarde, reproduziria “os desertos da Líbia”. Seu nome é José Bonifácio de Andrada e Silva. Dentro de três anos estaremos em 2023 quando se fecharão os 200 anos calculados pelo "Patriarca da Independência". O Brasil ainda não se transformou em deserto mas acalenta este desejo. É o que se percebe através da devastação promovida por mão humana no Pantanal, cujo estímulo, implícito ou explícito, vem do personagem sentado e fazendo lives em Brasília.

É interessante perceber que o patriarca não estava sozinho nessa preocupação. Mais de 50 intelectuais brasileiros dos séculos 18 e 19 deixaram escritas suas aflições com a degradação do ambiente, ainda no Brasil-Colônia. Foi o que descobriu o cientista político José Augusto Pádua, que enfeixou suas reflexões no livro Um Sopro de Destruição – Pensamento Político e Crítica Ambiental no Brasil Escravista (1786-1888).

O primeiro texto a respeito é conhecido sinteticamente como o Discurso, redigido pelo baiano e doutor em Coimbra, Baltasar da Silva Lisboa, em 1776. Desde então, nota Pádua, dezenas de autores da época perceberam a conexão entre a derrubada das florestas e uma série de problemas: escassez de água, esgotamento do solo, extinção de espécies, mudança de clima e outros.

Alguns foram ainda mais longe. Sustentaram que, enquanto vigorasse a escravidão, seria impossível a existência de uma relação saudável entre o homem e a terra. Bem, vimos que ainda hoje, mesmo sem escravidão formal, a convivência permanece danosa para o planeta. Mas um deles, Joaquim Nabuco, vinculou a obra de devastação ao tripé escravidão-latifúndio-monocultura, uma máquina de moer florestas que, ainda hoje, sem o escravismo, permanece devastadora.

Não era, porém o pensamento dominante. Bonifácio reagia, classificando a aniquilação como “crime horrendo e grande insulto feito à natureza”. E indagava: “Que defesa produziremos no Tribunal da Razão quando nossos netos nos acusarem de crimes tão culposos?”

Ler e ouvir as palavras do patriarca dois séculos depois de terem sido colocadas no papel, dá uma ideia pálida da atual tragédia brasileira. O que vai muito além da confrontação da envergadura de estadista de Bonifácio -- político, naturalista, escritor, um produto do Iluminismo -- diante da dimensão microscópica de Bolsonaro. Os escritos de Bonifácio e dos demais não eram puramente uma exaltação romântica das maravilhas naturais. Entendiam como estúpido, preguiçoso, errado e nocivo ao país o método de exploração, movido pela cobiça e a imprevidência.

Algo parecido com o que está ocorrendo com o Pantanal. No segundo e funesto ano de Bolsonaro no poder, os incêndios aumentaram 210%. É o recorde do século, com 14.489 focos. Quinze por cento do Pantanal, extraordinário patrimônio natural do país e do mundo, foram tragados pelas chamas.

Na Amazônia, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) registrou mais de 20 mil focos de incêndio apenas neste mês. É um território entregue aos grileiros, madeireiros, garimpeiros e outros picaretas que o bolsonarismo louva e incentiva. O Brasil, desde os tempos de Bonifácio, perdeu 100 milhões de hectares da Mata Atlântica. Dela, só sobraram 7%. O restante foi dilapidado pelas queimadas ou alimentou as fornalhas dos engenhos.

A partir das ações de quem manda e desmanda, a impressão inescapável é que a Amazônia de hoje é a Mata Atlântica de amanhã. E persiste o olhar de outro autor que, ao escrever sobre o Brasil do século 18, parece estar descrevendo o quadro que vemos agora. É José Vieira Couto que cita “uma agricultura bárbara” e adverte:

“Já é tempo de atentar nestas preciosas matas, nestas amenas selvas que o cultivador do Brasil, com o machado em uma mão e o tição em outra, ameaça-as de total incêndio e desolação”.

Edição: Rodrigo Durão Coelho