Rio Grande do Sul

Volta às aulas

Medidas mais enérgicas teriam evitado seis meses sem aula

A avaliação é da pneumologista Patricia Canto, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz

Sul 21 | Porto Alegre |
Pesquisadora da Fiocruz diz que aulas só devem voltar quando houver redução sustentada de casos de coronavírus - Guilherme Santos | Sul21

O novo calendário de retorno às aulas, proposto pelo governo do Estado, tem causado agitação nas famílias, na comunidade escolar e entre a classe médica. Por um lado, há a pressão política e econômica, pais e mães retornando ao trabalho e não podendo mais ficar em casa com os filhos, há escolas particulares fechando ou com grandes dificuldades econômicas, com inadimplência alta e perda de alunos, um contingente de  estudantes que o governador Eduardo Leite (PSDB) diz que a rede pública não tem condições de absorver. Mas há o ponto de vista da saúde e, sob este aspecto, o Rio Grande do Sul ainda permanece numa fase de elevados índices de contágio da população pelo coronavírus, com muitas mortes e pressão sobre o sistema de saúde — nos últimos dias, Porto Alegre teve dois sucessivos recordes na ocupação dos leitos de UTI.

No Brasil, os olhos se voltam para Manaus. A capital do Amazonas foi uma das primeiras a ser mais fortemente atingida pela pandemia, e também onde o ritmo da doença depois  desacelerou mais rápido, o que fez com que as autoridades permitissem a reabertura das escolas. Porém, apesar dos cuidados, algumas semanas depois muitos professores se contaminaram. No exterior, as experiências de retorno às aulas se alternam, há exemplos bons e ruins. Entre os melhores sucedidos, nenhum decidiu pela retomada das aulas presencias em meio a elevados índices de contaminação, como acontece no Rio Grande do Sul. 

“Se você não tiver uma redução no número de casos, no número de mortes, e que seja uma redução sustentada, ou seja, em pelo menos duas semanas, não tem como pensar em reabertura de escola”, diz a pneumologista Patricia Canto, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz.

Nesta entrevista ao Sul21, Patricia destaca a importância dos indicadores epidemiológicos para a decisão do momento ideal de retorno às aulas. Ela explica que a taxa de transmissão do vírus, chamada de Rt, deve estar na descendente, ser uma taxa menor que 1, de preferência em torno de 0,5. Se o Rt foi maior que 1, isso significa expansão da doença; se for menor que 1, representa sua contenção. Atualmente, estudiosos estimam, com base nos dados da Secretaria Estadual da Saúde (SES) e da Secretaria Municipal da Saúde da capital gaúcha, a taxa de transmissão do Rio Grande do Sul, no dia 31 de agosto, em 1,10, e de Porto Alegre, em 1,63. 

“Se você realmente não tiver uma taxa de transmissão na descendente, uma taxa menor que 1, de preferência em torno de 0,5, como é preconizado pela OMS, se não tiver condições de testar todos os sintomáticos e fazer isolamento, fica muito complicado pensar numa reabertura”, afirma a pesquisadora da Fiocruz. 

Ela destaca que a escola é um local de aprendizagem e também de proteção social. E concorda que o longo período fora da sala de aula expõe muitas crianças ao risco da violência doméstica e fragiliza aspectos alimentares importantes. Porém, diz ser necessário levar em conta que a reabertura das escolas aumentará a circulação de pessoas no transporte público e em horários de pico, além dos riscos para idosos ou pessoas com comorbidades que convivem com crianças ou membros da comunidade escolar. 

“Se a gente tivesse, desde o início, tomado as medidas mais precisas, mais enérgicas, não precisaríamos estar há seis meses sem aula”, analisa a pesquisadora, para quem a descoberta de uma vacina não resolverá “magicamente” o problema da pandemia se a população e os governos não colaborarem.

Sul21: Como você analisa o movimento de retomada das aulas presenciais em diferentes estados do País?

Patricia Canto: Temos um grupo de trabalho que tem discutido as publicações que têm saído em relação ao retorno às aulas, e nossa primeira consideração é com relação aos indicadores epidemiológicos, que têm que ser muito específicos em relação a cada estado, cada capital ou mesmo cada cidade. Se você não tiver uma redução no número de casos, no número de mortes, e que seja uma redução sustentada, ou seja, em pelo menos duas semanas, não tem como pensar em reabertura de escola.

Sul21: No RS, o governo do Estado escolheu começar pela educação infantil porque os pais estão voltando a trabalhar e também porque as crianças correm menos risco de desenvolver a doença.

Patricia Canto: A gente sabe que as crianças têm casos menos graves que os adultos, mas elas continuam podendo transmitir a doença. Com a abertura das escolas, há o aumento da circulação dos adultos, há toda a comunidade escolar, professores, educadores, auxiliares, há todo um grupo que trabalha para a manutenção das atividades escolares. Então a maior preocupação é em relação a isso. O governo do Rio Grande do Sul está adotando essa ideia do retorno pelos menores, porque é exatamente esse o grupo que tem menos relato de doença grave da covid-19, pensa estar protegendo as crianças, mas a nossa preocupação vai além disso. A gente pensa no grande número de adultos que você vai colocar em circulação na cidade por causa da reabertura escolar.

Sul21: Qual pode ser a consequência de uma reabertura precoce?

Patricia Canto: Ela pode causar um aumento do número de casos, e com isso você vai ter saturação de leitos de UTI e de clínica médica. Se você não tiver uma situação epidemiológica que a gente diga que é confortável, ou seja, disponibilidade de leitos clínicos e de UTI, se você realmente não tiver uma taxa de transmissão na descendente, uma taxa menor que 1, de preferência em torno de 0,5, como é preconizado pela OMS, se não tiver condições de testar todos os sintomáticos e fazer isolamento, fica muito complicado pensar numa reabertura. O Rio de Janeiro vinha numa descendente no número de mortos, depois passamos quase 14 dias numa situação de aumento no número de mortos, e agora estabilizou, mas isso é uma média móvel dos últimos 7 dias. Muito provavelmente, nenhum estado tem condições uniformes de retorno às aulas. É preciso avaliar isso nas grandes cidades e agora nas cidades do interior.

Sul21: Há a experiência de Manaus, que reabriu as escolas e houve muitos casos de contaminação entre os professores.

Patricia Canto: A gente vai ter que viver nessa situação. Qualquer protocolo de reabertura de escola, tem que prever o plano de fechamento também. Porque ao menor sinal de que, ao reabrir, você teve um aumento no número de casos, ou surtos em determinada escola ou turma, é preciso ter medidas efetivas de controle da situação. É preciso ter uma vigilância em saúde muito ativa, com participação das autoridades sanitárias e a secretaria municipal de Saúde, para que a reabertura seja feita com segurança, mas também com planos de vigilância e controle da doença em casos de surtos ou casos isolados dentro das escolas.

Sul21: Como conciliar os cuidados sanitários com a pressão econômica e o aparente cansaço da população?

Patricia Canto: Isso é um problema que começou no início da pandemia, porque não fizemos o isolamento que teria sido o ideal. As pessoas falam que estamos parados a mais tempo do que a Alemanha ficou parada ou a Espanha, só que esses países fizeram realmente o fechamento das atividades. Nós não tivemos aqui um lockdown. E com isso, ao invés de chegarmos num pico de casos e depois entrar numa curva descendente, o Brasil manteve sempre um número alto de casos. Se a gente tivesses, desde o início, tomado as medidas mais precisas, mais enérgicas, não precisaríamos estar há seis meses sem aula. 

É claro que a gente entende que a escola é um local de proteção social, não é só um local de educação formal. A escola é um local de proteção social e de sociabilização de crianças, adolescentes e até dos adultos, não podemos esquecer da educação de jovens e adultos. Então a escola é um lugar de proteção da saúde e da vida das crianças. As crianças ficam sim em risco com tanto tempo parado, risco de violência doméstica, risco de serem cooptadas pelo tráfico, questões alimentares. A gente tinha que ter tido, desde o início, uma política de proteção das crianças, de segurança alimentar e segurança da violência mesmo, violência doméstica. E principalmente, esse tempo todo parado está acentuando as diferenças que nós já temos entre a educação pública e a privada, entre as populações mais vulneráveis e aquelas com maior poder aquisitivo. Com isso, não fizemos isolamento adequado logo no início, a pandemia foi se perpetuando, se abriram os estabelecimentos, shoppings e bares, e a escola foi ficando por último. E sabemos de todas as questões, de mães que não têm com quem deixar os filhos…mas a gente não pode esquecer de que temos muitos idosos, muitas pessoas com comorbidades que ainda estão nas suas casas. E a abertura da escola também vai aumentar as pessoas no transporte público e pessoas circulando no horário de pico por conta das escolas.

Sul21: O que devemos esperar dos próximos meses de pandemia no Brasil, até que haja uma vacina?

Patricia Canto: Se tivermos uma vacina até o primeiro semestre do próximo ano, será um recorde, nunca tivemos isso na história da humanidade. Temos várias possibilidades de vacinas sendo testadas, mas, particularmente, acho que isso não vai resolver magicamente o problema da pandemia, em especial se a população e os governos não se ajudarem. A vacina de Oxford, a qual a Fiocruz tem parceria, para a possibilidade de introdução já está sendo testada em duas doses. Caso os estudos se confirmem, a liberação deve ser em duas doses. Então imagina, tem que primeiro haver uma dinâmica de um grande número de doses pra vacinar uma vez, e depois o mesmo número grande de doses pra vacinar uma segunda vez toda a população. Estamos falando de uma velocidade gigantesca porque é o mundo inteiro precisando. E não é só vacina, é toda uma logística, seringas, agulhas, enfim, tudo o que envolve uma dinâmica de distribuição de vacinas para o território nacional, que é gigantesco, um país com situações totalmente diferentes no Amazonas, no Rio Grande do Sul, no Mato Grosso, em Tocantins, cada estado tem a sua especificidade e alguns com dificuldades maiores, como populações ribeirinhas, com acesso só de barco.  

Edição: Sul 21