Coluna

Moral, milícias e mamatas

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Um primeiro potencial adversário de Bolsonaro começa a cair: o STJ determinou o afastamento do governador do Rio, Wilson Witzel, por suspeitas de fraudes em compras para o combate à pandemia - Marcos Corrêa / Agência Brasil
Apenas Bolsonaro mantém a “posse de bola”, sustentando-se na pauta moral

O jogo é jogado e o lambari é pescado, diz um velho ditado do mundo do futebol. Na atual conjuntura política, porém, apenas Bolsonaro mantém a “posse de bola”, sustentando-se na pauta moral e no empoderamento das corporações policiais e militares, enquanto tenta aumentar o gasto público em programas sociais, único fato que realmente preocupa o mercado e a grande imprensa. A oposição apenas observa, mas pode aprender com as próprias vitórias, como no gol do Fundeb marcado essa semana.

Antes de ler o Pontoparticipe da pesquisa de público do Brasil de Fato. É jogo rápido.

1. Segue a vida. O editorial em que a Folha de S. Paulo fundiu o nome de um bajulador de torturadores ao sobrenome de uma vítima de torturas é infame por si só e, também, mais uma mostra de como aos avalistas da estabilidade política brasileira só interessa a manutenção da política de austeridade fiscal.

Somos o décimo país do mundo em número de mortes causadas pelo coronavírus por 100 mil habitantes e ultrapassamos os Estados Unidos nesse ranking perverso de mortes. Mas Bolsonaro se sente à vontade para realizar um evento chamado “Brasil vencendo a covid”. Polêmica mesmo na imprensa só o processo de fritura com o último superministro do governo.

Após vazar que a criação do Renda Brasil demandaria o corte do abono salarial para quem ganha até dois salários mínimos, Paulo Guedes foi criticado publicamente por Bolsonaro, num sinal de que o presidente teria entrado de vez no time dos que querem desgastar o antigo Posto Ipiranga.

Bolsonaro andaria dando mais ouvidos aos conselhos dos generais Ramos e Braga Netto, inclusive nos temas econômicos, o que inclui a retomada do Pró-Brasil com uma proposta que tira R$ 6,5 bilhões de outras áreas. No caso do Renda Brasil, o governo tem uma equação difícil para solucionar, como explica Antônio Martins no site Outras Palavras.

Bolsonaro precisa manter de algum modo a transferência de renda para os mais pobres, sabendo que mais cedo ou mais tarde enfrentará a crueza da crise econômica, mas este dinheiro na mão do povo deve vir acompanhado de um amplo ataque aos direitos sociais.

Nas palavras de Helena Chagas, Bolsonaro crê que repaginando programas sociais do governo Lula conseguirá o apoio dos mais pobres, o que é realidade no momento, mas pode não se confirmar no médio prazo, considerando que as políticas de transferência de renda se davam em um contexto de dinamismo da economia.

De qualquer forma, essa é a aposta de Bolsonaro para 2022, aliada à subida de tom nas pautas morais, como temos destacado recentemente. Bolsonaro terá de voltar a brandir a espada ideológica, escreve a colunista Thaís Oyama, destacando o papel da ministra Damares neste processo.

“Bolsonaro belicoso e polarizador faz sucesso. Vem muita porrada ainda pela frente”, diz. Enquanto isso, um primeiro potencial adversário de Bolsonaro no campo da direita começa a cair: o STJ determinou o afastamento do governador do Rio, Wilson Witzel, pelas suspeitas de fraudes nas compras relacionadas ao combate à pandemia.

Coincidência ou não, Bolsonaro reforça o afago à “sua PF” ao decidir pela criação de concurso público para a corporação, contrariando mais uma vez a área econômica, enquanto militares da reserva são contratados para escolas cívico-militares que ainda nem existem. Estes são os pilares nos quais Bolsonaro pretende se sustentar até 2022.

2. Estado mínimo, renda única. A questão da permanência do auxílio emergencial e de criação da Renda Brasil não são apenas um mecanismo para a reeleição de Bolsonaro. Na prática, toda política social do governo será reduzida ao auxílio. Como alerta o economista Guilherme Mello (Unicamp), para os liberais, “essa renda deveria ser a única forma de intervenção do Estado no tema social.

Educação, saúde, previdência, cultura, tudo deve ser privado, aceitando-se no máximo a adoção de "vouchers" para os muito pobres acessarem o serviço privado”. É a mesma lógica por trás da questão ambiental, por exemplo. Apesar do General Mourão minimizar os estragos na Amazônia, as queimadas crescem na mesma proporção em que as multas de crimes ambientais caem. 

Segundo a Agência Pública, em cada dez municípios que as multas diminuíram, oito aumentam as queimadas. Apesar da presença de oito mil soldados na região, a omissão é política de Estado, abrindo espaço para a iniciativa privada ocupar o lugar do Estado, através de uma coalizão de empresários batizada de Concertação pela Amazônia.

Outros benefícios também são “queimados” na velocidade amazônica: nesta semana, Bolsonaro vetou quase integralmente a proposta que previa apoio aos agricultores familiares que não recebem o auxílio emergencial durante a pandemia para produzirem alimentos.

Já o programa habitacional  “Casa Verde Amarela”, anunciado também nesta semana, exclui famílias com renda até R$ 1,8 mil, faixa que era abrangida pelo antigo “Minha Casa, Minha Vida”. Vale lembrar que a fórmula para viabilizar o Renda Brasil era o fim do abono salarial, do seguro-defeso de pescadores e o fim das deduções em saúde e educação no Imposto de Renda.

Ou ainda o Farmácia Popular, que atende 21 milhões de pessoas e custa metade dos R$ 5 bi do Pró-Reeleição. Enquanto o auxílio emergencial é tratado como o terrível mecanismo que vai destruir as finanças do país e garantir a reeleição de Bolsonaro, outros auxílios “permanentes” são tratados em profundo silêncio.

Por exemplo, a renúncia fiscal do governo para desonerar a folha de pagamento das empresas, que significou R$ 10 bilhões neste ano. Nos últimos oito anos, a desoneração equivale a praticamente metade do que o governo desembolsou com o programa Bolsa Família no período (R$ 235,7 bilhões).

3. A lei de Dom João VI. No filme “Carlota Joaquina” de Carla Camurati, o personagem Dom João VI costumava repetir que “quando não souber o que fazer, não faça nada”. Parte da esquerda parece ter adotado esta máxima diante da conjuntura.

Com quase dois anos de governo, quatro hipóteses que apostavam na implosão do governo fracassaram, como elenca Alon Feuerwerker: o governo é estável, mantém base no Congresso e popularidade, não fez economia de ruptura, não foi tutelado nem por Guedes nem por Moro e nem permitiu a formação de uma frente ampla de oposição.

Mais duro, Aldo Fornazieri diz que a esquerda ficou presa a duas narrativas que não se cumpriram: a iminência da queda de Bolsonaro ou a iminência de um golpe militar de Bolsonaro. A inércia parece levar à desistência de um engajamento real numa campanha “Fora Bolsonaro” e na resignação com a pandemia, seguindo a vida em direção a uma eleição municipal pouco auspiciosa, enquanto fica a torcida para que o auxílio emergencial acabe logo e as chances de chegar ao segundo turno em 2022 apareçam.

Mas, e se a economia der sinais de vida? Com 13 milhões de desempregados, qualquer estímulo pós-pandemia vai parecer com crescimento. Para sair deste beco sem saída, Thomas Traumann sugere que a oposição, de centro e esquerda, mire no exemplo de Joe Binden nos EUA e aposte no pragmatismo: Biden convenceu os democratas que esta não era uma disputa de carisma, mas na capacidade de ser eleito, de juntar no mesmo barco eleitores que até se desprezam.

4. Pelo menos uma. Pode ser mais um capítulo do parlamentarismo à brasileira, mas não deixa de ser uma vitória da sociedade civil organizada e uma mostra que a mobilização ainda faz diferença. Na terça (25), o Senado aprovou sem alterações o texto que torna permanente o Fundeb.

Entre os pontos aprovados, a PEC aumenta a complementação da União de 10% para 23%, gradualmente por seis anos, além de mudar a forma de distribuição de recursos aos estados e Distrito Federal. O texto também “constitucionaliza” Custo Aluno Qualidade (CAQ), parâmetro que estava previsto no Plano Nacional de Educação (PNE).

O CAQ prevê recursos para formação continuada dos professores, acesso à internet, infraestrutura em escolas e bibliotecas, além de garantir uma jornada de sete a dez horas para os alunos e o piso salarial para todos os profissionais da educação.

“Por meio do CAQ, agora há possibilidade de que os recursos da educação, especialmente o dinheiro do novo Fundeb, cheguem efetivamente nas escolas, melhorando as condições de oferta da educação e o padrão de qualidade das unidades escolares, sempre com fortalecimento do controle social”, aponta a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, que considera a aprovação uma vitória da escola pública.

O desafio agora é a discussão sobre a regulamentação desse mecanismo que amplia os recursos para a educação de acordo com parâmetros de qualidade. A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) destaca a mobilização dos sindicatos em todo o Brasil e a intensa mobilização nas redes sociais que culminou com a aprovação do novo Fundeb.

5. Nem autonomia, nem democracia. Universidade ou instituto federal que esteja em processo eleitoral já sabe: a vitória de um candidato na consulta à comunidade acadêmica está longe de significar a efetiva posse do eleito. Depois de intervir em pelo menos metade das instituições que realizaram eleição ano passado, o governo federal voltou à carga, escancarando que tomou gosto por passar por cima da autonomia universitária e nomear dirigentes que possam ser aliados de um projeto de educação alinhado à lógica da privatização, educação a distância e corte de gastos.

Ainda na semana passada, em uma de suas visitas regulares da pré-campanha eleitoral ao nordeste, Bolsonaro anunciou a nomeação da professora Ludimilla Oliveira como reitora da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa).

Ludimilla foi apenas a terceira colocada na eleição interna, mas colou em Bolsonaro para garantir a nomeação. É a situação vivida na UFRGS, onde o também terceiro colocado na eleição realizada em julho vem se articulando com os representantes do bolsonarismo no Estado para tentar a nomeação. Mesmo nos institutos federais, onde não há a lista tríplice e o primeiro colocado deve ser nomeado, Bolsonaro também tem aproveitado as brechas para escolher um nome mais alinhado ao seu projeto.

O projeto de ignorar a autonomia se estende para outras instituições, como foi aliás a própria nomeação de Augusto Aras no MPF. De acordo com reportagem da Folha, a família presidencial quer influenciar também a escolha do novo procurador-geral de Justiça do Rio. É no MP-RJ que corre a investigação sobre o esquema de rachadinhas do então deputado estadual Flávio Bolsonaro.

6. Vidas negras importam? A violência policial contra cidadãos negros voltou a incendiar os Estados Unidos. No domingo (23), Jacob Blake, de 29 anos, foi alvejado por sete tiros nas costas por policiais, quando estava na frente dos filhos, desarmado e apenas tentando separar uma briga entre duas mulheres.

Ele está em estado grave e com a parte inferior do corpo paralisada. O caso, ocorrido em Kenosha, cidade que fica no estado de Wisconsin, entre Milwaukee e Chicago, desencadeou mais uma onda de protestos, que culminou com a morte de dois manifestantes. O suspeito é um jovem de 17 anos, branco, que morava na cidade de Antioch, estado de Illinois, e viajou para Kenosha para a ação.

Há vídeos em que ele aparece com um fuzil atirando em manifestantes, sem intervenção da polícia. Em protesto, o time de basquete Milwaukee Bucks, time do estado onde vive Jacob Blake, decidiu não entrar em quadra para enfrentar o Orlando Magic, em jogo que estava marcado para quarta (26) pelos playoffs da NBA. O protesto dos jogadores levou a NBA a adiar toda a rodada.

O que fez Donald Trump? Bem, o presidente norte-americano, que na convenção que confirmou sua candidatura à reeleição exibiu um depoimento do casal flagrado apontando armas contra manifestantes do Black Lives Matter, mandou a Guarda Nacional para Kenosha a fim de combater “saques, incêndios criminosos, violência e ilegalidade nas ruas americanas".

No Brasil, não faltam motivos para que a luta antirracista exploda de forma ainda mais forte. Dados do Atlas da Violência 2020 mostram que, entre 2008 e 2018, o número de homicídios de pessoas negras no Brasil cresceu 11,5% e o de pessoas não negras caiu 12,9%.

Em contrapartida, dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio apontam que, desde que a determinação do STF de suspender operações nas comunidades durante a pandemia, o número de pessoas mortas pela polícia quase 80%.

Mesmo assim, operações policiais seguem acontecendo nas comunidades, como a realizada na quarta (26) na Cidade de Deus: o motivo seria a expansão de facções no período da pandemia. Porém, como bem aponta Reinaldo Azevedo, o STF não proibiu a presença da polícia nas favelas e sim as operações que costumam fabricar mortos em série.

A lógica aqui não difere muito da dos Estados Unidos: reportagem da Globo, por exemplo, chamou o Complexo da Maré, que tem mais de 140 mil habitantes, de “bunker de bandidos”, gerando revolta nas redes sociais.

Já a nossa extrema-direita deixou bem claro que seu objetivo de copiar os gurus norte-americanos inclui também ser abertamente racista: Eduardo Bolsonaro foi ao Twitter defender o adolescente acusado de matar os dois manifestantes nos EUA, com uma retórica pró-armas que escancara um dos projetos bolsonaristas de expansão da posse, porte e comercialização de armas, que já produz seus efeitos no aumento do registro de armas de fogo e sugere, no curto prazo, a ampliação do poderio das milícias nas eleições municipais.

7. Falando em milícias. O grande problema de Bolsonaro é ameaçar não seguir à risca a cartilha neoliberal, o restante parece que é bem tolerado por todo mundo nos outros poderes. Afinal de contas, se um jornalista leva uma resposta grosseira ao perguntar sobre os depósitos de Queiroz na conta de Michelle Bolsonaro talvez seja porque o Ministério Público não parece ter muita pressa em saber a resposta nestes quase dois anos de investigações das “rachadinhas”.

Como demonstram as incríveis façanhas alcançadas por Flávio Bolsonaro, elencadas por Bernardo Mello Franco, no Supremo Tribunal Federal (STF), no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) e agora pela Procuradoria Geral da República (PGR).

O procurador Augusto Aras pediu ao STF que rejeite a ação do MP-RJ que contesta o foro privilegiado de Flávio Bolsonaro na investigação. E se depender do Superior Tribunal de Justiça (STJ), com a chegada do “moderado” e Humberto Martins à presidência da Corte e do já prestativo Noronha na 5ª turma onde estão outros processos, a sorte continuará sorrindo para o Zero Um.

Mas, será preciso muita ajuda, porque a quantidade de casos ligados à família não param de ser revelados. Nesta semana, o Globo teve acesso a um relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), enviado para o Ministério Público e a Polícia Federal, que descreve que Wassef & Sonnenburg Sociedade de Advogados e Frederick Wassef são alvos de procedimento de investigação criminal por suspeita de peculato, corrupção ativa e passiva, lavagem de dinheiro e organização criminosa”.

O ex-advogado da família teria pago R$ 10,2 mil ao médico urologista de Queiroz e também teria feito pagamentos ao outro advogado de Jair Bolsonaro, Arnaldo Faivro Busato Filho, nas ações penais por apologia ao estupro e injúria, movidas pela deputada federal Maria do Rosário (PT-RS).

Além disso, o advogado teria recebido repasses volumosos da sócia da Globalweb Outsourcing, Bruna Boner, empresa que tem contratos com o governo federal. Já a Polícia Civil da Bahia encerrou o inquérito que investigou a morte do miliciano Adriano da Nóbrega, outra peça-chave para entender a relação entre as rachadinhas, lavagem de dinheiro e milícias cariocas.

As investigações descartaram tortura e execução, hipóteses difundidas por Flávio Bolsonaro nas redes sociais, e confirmaram que o ex-policial homenageado duas vezes pela família foi morto com dois tiros.

8. Ponto Final: nossas recomendações de leitura.

“Quem quer civilizar o Brasil não pode temer o poder. Temos de nos livrar dessa alma de senhor de escravo”. O filósofo e advogado Silvio Almeida é entrevistado do El País sobre como enfrentar a naturalização do racismo no Brasil e como afirmar a vida como valor oposto ao bolsonarismo.

Como em tudo o mais, 2020 será imprevisível eleitoralmente. O colunista do Valor Econômico Bruno Carazza avalia os fatores que podem ou não influenciar nas eleições municipais: conjuntura econômica, campanha pelas redes sociais e poderio dos “partidos” militar e evangélico.

Saiba o que é o The Send, movimento ultraconservador dos EUA que Damares trouxe ao Brasil. Na revista Fórum, Luísa Fragão descreve o movimento missionário The Send, apoiado por Damares Alves e que mira na juventude com um discurso ultraconservador.

Os irmãos Koch miram a América Latina. No Outras Palavras, Carolina Rieger Massetti Schiavon e Katya Braghini escrevem sobre como funciona o recrutamento e treinamento de jovens conservadores pelas ONGs dos irmãos Koch e como miram os ataques à educação pública.

Fumaça, calor e cansaço: como os brigadistas combatem o fogo no Pantanal. Em texto e vídeo, Vanessa Nicolav retrata, no Brasil de Fato, o trabalho dos brigadistas que enfrentam os piores incêndios da história do Pantanal.

Vacina não é bala de prata, pandemia exige ações complexas para superar a quarentena. Em entrevista para o Instituto Humanitas, o pesquisador Naomar de Almeida Filho (UFBA) acredita que as estratégias de controle epidemiológico serão mais eficazes para combater a covid-19 do que a própria vacina.

A Pandemia acabou?. No Estadão, o psiquiatra Daniel Martins de Barros escreve sobre o ciclo de amedrontamento e relaxamento nas epidemias e como, por ser transitório, o medo perde sua eficácia por elas ser constantemente adiadas.

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Edição: Leandro Melito