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Dossiê contra antifascistas: o Supremo e a pauta do abismo

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Se o governo de Jair Bolsonaro monitora militantes antifascismo, significa que se identifica com o fascismo? - Isaac Amorim / Fotos Públicas
O STF julga nesta quarta a ação contra 579 servidores públicos que se identificam antifascistas

“A história nos permite sermos responsáveis não por tudo, mas por alguma coisa.”

(Timothy Snyder – “Sobre a Tirania”)

 

O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julga, nesta quarta-feira (19), a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 722, ajuizada pelo partido Rede Sustentabilidade, para averiguar a investigação sigilosa, efetuada pela Secretaria de Operações Integradas – Seopi, do Ministério da Justiça, contra 579 servidores públicos federais e estaduais, que se identificam como militantes antifascistas, com foco, principalmente, na atuação do movimento dos policiais antifascismo, e alguns professores, nominalmente citados nas matérias jornalísticas.

No dia 4 de agosto a ministra Cármen Lúcia, relatora do caso, deferiu liminar nos autos da ADPF ajuizada, determinando que em 48 horas o Ministério da Justiça prestasse informações, naquilo que considerou “a se comprovar verdadeiro – escancara comportamento incompatível com os mais basilares princípios democráticos do Estado de Direito e que põem em risco a rigorosa e intransponível observância dos preceitos fundamentais da Constituição da República”. Recebeu uma resposta, no mínimo ambígua, da pasta, alegando a possibilidade de vazamento caso houvesse o envio de informações ao Supremo Tribunal Federal e insinuando invasão de competência do Poder Legislativo, segundo ele, para tratar o tema.

O pedido na ação é a abertura imediata de inquérito para verificar eventual crime cometido por parte de Mendonça e seus subordinados e a informação do conteúdo produzido em 2019 e 2020 nas instâncias de inteligência e se abstenha de produzir relatórios sobre integrantes do movimento antifascista.

O que o plenário do Supremo Tribunal Federal terá para analisar no dia 19 de agosto é, na verdade, um paradoxo em si mesmo. Em uma democracia, cidadãos são investigados pelo seu governo por se intitularem militantes contra o fascismo. Sim, o fascismo, a forma radical do espectro político de extrema-direita, que despreza as liberdades individuais, a democracia representativa e os direitos humanos e que, em sua acepção aplicada, inspirou o Holocausto, que dizimou milhões de pessoas, maioria judeus, mas também ciganos, LGBTs, pessoas com deficiências, opositores políticos, em campos de concentração e de extermínio. Que provocou o horror em todo o mundo civilizado.

Sistemas governamentais de inteligência compreendem organizações permanentes e atividades especializadas na coleta, análise e disseminação de informações sobre problemas e alvos relevantes para a política externa, a defesa nacional e a garantia da ordem pública de um país. Serviços de inteligência são órgãos do Poder Executivo que trabalham prioritariamente para os chefes de Estado e de governo e, dependendo de cada ordenamento constitucional, para outras autoridades da administração pública e mesmo do parlamento.

No modelo brasileiro, existe a inteligência de Estado, regulada pelos interesses de proteção ao Estado, para auxiliar a presidência da República em temas do âmbito externo e interno do país, sempre diante de ameaças, e a inteligência policial, para dar suporte às operações, reguladas pela ação de investigação criminal. Na investigação criminal é imprescindível a existência de um fato criminoso originário, ou fortes indícios, que autorize métodos como interceptação telefônica, pedido de cadastros e afins. É feita pelos legitimados do sistema: a polícia e o Ministério Público, por meio de um inquérito.

Não sendo esse o caso, resta o questionamento: que tipo de atemorização os cidadãos do dossiê oferecem ao Estado brasileiro? Ou talvez haja outra pergunta, mais direta e incômoda: se o governo de Jair Bolsonaro monitora militantes antifascismo significa que se identifica com o fascismo?

Constituiria certamente grave erro subestimar o papel que o sentimento autoritário tem desempenhado no governo do Brasil, com desejo golpista de fechamento de regime, independente de haver, ou não, condições objetivas para a efetivação. Ilusão ainda mais grave seria não enxergar como esse mesmo governo utiliza a estrutura para criar mecanismos de perseguição, amedrontamento e constrangimento a adversários, sob pretextos que não possuem qualquer sustentação republicana. Lembrando as lições de Hannah Arendt no seu clássico livro Origens do Totalitarismo, “a diferença fundamental entre as ditaduras modernas e as tiranias do passado está no uso do terror não como meio de extermínio e amedrontamento dos oponentes, mas como instrumento corriqueiro para governar as massas perfeitamente obedientes”.

Se maior parte do poder concedido ao autoritarismo é voluntário, também é na política do dia a dia que podemos impedir que ele avance.

Tenho escrito que as instituições precisam mostrar, nesta atual quadra histórica brasileira, que nossa democracia não é apenas formal, que estão funcionando de fato. Significa dizer, no caso presente, que ao Congresso Nacional cumpre impor sua fiscalização e supervisão sobre o desempenho dos serviços de inteligência, para que se adequem ao princípio da transparência. E que ao STF não cabe aceitar explicações que escamoteiam os fatos, meias medidas ou decisões paliativas.

A seriedade da produção de dossiês contra cidadãos não pode ter como resposta pública uma reação natural, que corresponde à tentativa cínica de usar a normalidade como álibi para o abuso.

O desafio segue sendo a correção de rumo pelos demais poderes sempre que o flerte com o abismo se apresente como método do governo federal.

Nesta segunda-feira (17), o ministro André Mendonça, preocupado com a repercussão e as consequências da arapongagem, e após dias tentando se explicar e contar “sua versão” dos fatos, entregou ao STF o dossiê, e afirmou que constituirá um grupo de trabalho para formular a política nacional de inteligência.

Antes tarde do que mais tarde, já diria o jargão popular.

A entrega do documento significa assumir a veracidade das acusações feitas, não apenas nos autos da ADPF 722, mas também na Comissão de Inteligência do Congresso Nacional, pela sociedade civil organizada e por vários veículos de comunicação, e obriga seu deferimento. Ocorre que a Corte a quem cabe fazer cumprir a Constituição Federal não pode renunciar ao imperativo ético de assumir a responsabilidade de vetar os arroubos de tirania mal disfarçada.

É o que a sociedade espera.

 

Edição: Rodrigo Durão Coelho