O maior desafio do Flamengo é encontrar o treinador correto para manter o legado do Mister vivo
"Foram 13 meses de uma união perfeita, tempo em que fui muito feliz, me senti em casa, tivemos conquistas inesquecíveis. Mas hoje nos reunimos com a diretoria do Flamengo e decidimos que era o momento de encerrar nossa relação, sem mágoas, ressentimentos. Um rompimento que não deixará cicatrizes, somente lembranças de vitórias e títulos, de emoções que carregarei para toda vida. Fim de um ciclo, chegou a hora de voltar a Portugal. O Flamengo, tenho certeza, seguirá sua trajetória vitoriosa porque conta com elenco e estrutura à altura de sua grandeza. Ao clube, sua diretoria e seus funcionários, a esse grupo fantástico de jogadores, à Nação Rubro-negra, minha eterna gratidão, vocês permanecerão para sempre em meu coração."
Essas foram as palavras que o técnico Jorge Jesus utilizou, a partir de uma postagem no seu Instagram, para anunciar a sua saída do Flamengo. Após duas semanas que envolveram duas decisões, a da Taça Rio e a do Campeonato Carioca, o treinador português aceitou a proposta do Benfica e vai comandar os encarnados pelas próximas três temporadas. O Mister deve levar toda a sua comissão técnica para Portugal, apenas quem fica é o doutor Márcio Tannure, chefe do departamento médico do Flamengo, porque este decidiu permanecer no clube.
A saída de Jorge Jesus foi sacramentada após uma reunião entre ele, Rodolfo Landim, presidente do Flamengo e Marcos Braz, vice-presidente de futebol, realizada na tarde da última sexta-feira (17).
Ao final do encontro, Braz explicou aos jornalistas que a diretoria só tomou conhecimento do desejo do Mister naquela ocasião apesar dos claros sinais de que algo estava acontecendo e do fato da imprensa esportiva, principalmente a portuguesa, já especular sobre o retorno do treinador ao Benfica há pelo menos duas semanas. Mesmo assim, Marcos Braz garantiu que não há mágoas e que Jorge Jesus sai pela "porta da frente".
"Não tem lamento. Estamos [Flamengo] com 125 anos. Passa o Jorge, passa a diretoria, passam tantas pessoas que trabalharam, tantos ídolos. A gente está triste porque não era o que queríamos, tanto que renovamos o contrato. Nos esforçamos. Mas agora, nesse segundo momento, teve um outro entendimento que eu vou respeitar. O Jorge e todos saem pela porta da frente, de uma maneira correta e humana. Vida que segue. Será seguida."
As palavras de Marcos Braz, no entanto, não amenizaram o desgosto e a revolta de boa parte da torcida do Flamengo. Vários passaram a enxergar o Mister como uma espécie de "traidor" após ter renovado com o clube e pedir para sair no mês seguinte. É como se a aura criada em torno de Jorge Jesus e de tudo o que ele fez no futebol brasileiro tivesse sido manchada assim que ele "rejeitou" o Flamengo logo na primeira proposta que recebeu da Europa. Há também quem já tenha amaldiçoado e feito juras de ódio ao Benfica e ao próprio treinador.
Mas a verdade é que Jorge Jesus deixa um legado imenso no Flamengo e no futebol brasileiro. Foram 13 meses de uma união vencedora e repleta de glórias. No ano passado, venceu o Campeonato Brasileiro e a Copa Libertadores da América. E levou a Recopa Sul-Americana, a Supercopa do Brasil, a Taça Guanabara e o Campeonato Carioca em 2020. O Mister tem mais títulos (seis) do que derrotas no comando do Fla (apenas quatro). O futebol apresentado nesse período foi o de maior qualidade nos últimos anos aqui no Brasil. Sem nenhum tipo de exagero.
Mas se o Flamengo deve muito a Jorge Jesus, ele também deve muito ao Flamengo. Mesmo com a diretoria apostando numa "grife" estrangeira após a saída conturbada de Abel Braga sem sequer realizar um estudo mais profundo do estilo desejado para o novo técnico, coisa bem comum aqui por essas bandas. O Mister encontrou no clube da Gávea o lugar certo para renascer como treinador. Os investimentos nas contratações de Gérson e Pablo Marí, ambos pedidos do treinador português, bem como as chegadas de Rafinha e Filipe Luís foram importantíssimos na montagem do time que encantou o torcedor e conquistou a Libertadores após 38 anos de espera. Jorge Jesus teve no Flamengo todo o apoio necessário para trabalhar.
Mesmo assim, este colunista não consegue ver a saída de Jorge Jesus para o Benfica como "trairagem" com o Flamengo. O Mister já havia deixado bem claro que tinha saudades da família e dos amigos e que almejava um retorno à Europa em várias oportunidades.
Pode ser que ele tenha esperado demais por uma oferta que só veio após a renovação de contrato com o Fla, realizada no último mês. Por outro lado, as suas razões parecem bem claras para mim. E totalmente justificáveis e aceitáveis. Em primeiro lugar, estamos falando de uma escolha puramente profissional e que deve ser respeitada. Jorge Jesus acha que seu ciclo no Flamengo se encerrou, pelo menos por agora, e que um retorno para Portugal é a melhor escolha. A vida é feita dessas coisas. Aos 66 anos, o Mister vai ficar perto da família e dos amigos. E isso é muito mais importante do que qualquer declaração de amor a qualquer clube do mundo. Família SEMPRE vem primeiro.
Ainda existe uma questão de saúde pública. Portugal vem sendo muito mais responsável no combate à pandemia do novo coronavírus do que o Brasil. Me responda com toda sinceridade: você se sente seguro vivendo num país onde NÃO EXISTE um plano para conter uma doença que mata mais de mil pessoas por dia? Viver aqui anda cada vez mais complicado. E a oportunidade de voltar pra casa pode ter falado mais alto num momento em que o Brasil vai “voltando ao normal” no mesmo momento em que se transformou em epicentro da pandemia.
E também precisamos falar do nosso futebol e da sua estrutura básica. Nosso calendário é uma bagunça, nossas competições ainda são muito deficitárias e as coisas são decididas na base do fígado, do clubismo e do interesse pessoal.
Por mais que o velho e rude esporte bretão seja movido à paixão, é preciso sabedoria e discernimento para organizar as coisas. Fora isso, vale lembrar também das tentativas de interferências no trabalho do Mister por determinados dirigentes, lembram da demissão de Paulo Pelaipe no início do ano? E do boato espalhado na Internet por gente de dentro do Flamengo, segundo algumas fontes, de que Jorge Jesus teria uma amante e que estaria voltando para Portugal porque foi descoberto. Coisas que só evidenciam o "modus operandis" da gestão do nosso futebol.
Há quem diga que Jorge Jesus não foi transparente com a diretoria do Flamengo. Mas será que os dirigentes rubro-negros são totalmente transparentes com seu torcedor?
Vamos lembrar da maneira como trataram as vítimas da tragédia no Ninho do Urubu e das polêmicas com a TV Globo, que também não é nenhuma santa nessa história, chegando até à cobrança de R$10 para quem quisesse ver o jogo contra o Volta Redonda numa plataforma de streaming. E vamos lembrar também que essa mesma diretoria negociou com o próprio Jorge Jesus quando Abel Braga ainda era o técnico. Há como se cobrar ética quando você não age com ética? Difícil. E mais: as especulações sobre a saída de JJ do Fla começaram no final do mês de junho. Impossível que algum dirigente tenha sido pego de surpresa. Ou não estão sendo completamente sinceros ou são completamente ingênuos.
Fato é que a era Jorge Jesus chegou ao fim. E o maior desafio do Flamengo é encontrar o treinador correto para manter o legado do Mister vivo e dando os frutos que eu e você vimos nos últimos meses. Não é tarefa fácil. Mas a boa estrutura do clube facilita esse processo.
A escolha de Jorge Jesus, pelo menos para este colunista, foi puramente profissional. Não houve "trairagem" ou qualquer coisa do gênero. Apenas o desejo de mudar. Simples.
Vida que segue. E será seguida.
Edição: Jaqueline Deister