Paraná

Preconceito

Indígenas denunciam racismo após serem impedidos de comprar em mercado no Oeste do PR

Estabelecimentos de Diamante d'Oeste dizem ter recebido orientação de fiscais da Prefeitura para “não atender indígenas”

Francisco Beltrão (PR) |
Marcelo Kupju Alvez, de 31 anos, disse que, após ter atendimento negado em um mercado, foi atendido em outro, mas escondido: “Me senti como se eu fosse um fugitivo" - Isadora Stentzler

Pelo menos dois guaranis da Reserva Indígena Tekoha Anhetete, em Diamante d’Oeste, no Paraná, foram impedidos de comprar no Supermercado Paulista, na sexta-feira, dia 3 de julho. Segundo os indígenas, a responsável pelo estabelecimento disse que foi orientada por uma fiscal da prefeitura a não atendê-los devido a um decreto que limitava a circulação de pessoas do grupo de risco da Covid-19 na cidade. Um dos indígenas também disse ter ouvido que “todo mundo tem doença na aldeia” e, por isso, não poderia entrar. O caso já foi denunciado ao Ministério Público do Estado (MPE) e a Procuradoria Geral da República (PGR) instaurou procedimento para apuração de possível crime de racismo.

Os indígenas vivem na aldeia Anhetete, cerca de 20 quilômetros de Diamante D’Oeste. A aldeia é acessada por uma estrada de terra, que, antes, cruza a Tekoha Itamarã, também de indígenas guaranis. De acordo com o cacique da aldeia Anhetete, João Jetauy Miri Alvez, ou Joãozinho, de 52 anos, desde o início da pandemia apenas dois casos positivos de Covid-19 foram registrados na reserva, sendo um em uma jovem de 17 anos e outro em um jovem de 28.

Ambos são funcionários da LAR Cooperativa Agroindustrial, que só liberou os indígenas após uma explosão de casos positivos da Covid-19 na aldeia Ocoy, em São Miguel do Iguaçu, também no oeste paranaense.

Na Anhetete, os casos foram diagnosticados, de acordo com o cacique, há cerca de duas semanas, mas já estavam recuperados naquela sexta-feira. A própria reserva segue protocolos próprios para evitar o contágio e a propagação da doença. O receio, segundo o cacique, era de que, caso se isolassem, sofreriam preconceito na cidade.

“Todo mundo tem doença na aldeia”

Na sexta-feira pela manhã, dia 3 julho, William Tupã Chamororor, guarani de 20 anos, saiu da aldeia para comprar uma melancia. Foi ao Supermercado Paulista, mas conta que, ao chegar, foi barrado. “Falaram que todo mundo tem doença na aldeia”, disse ter ouvido na porta do estabelecimento, saindo e conseguindo comprar a fruta em outro lugar – onde não teria sido impedido.


William Tupã Chamororor, guarani de 20 anos, disse que ouviu - ao ser impedido de entrar em mercado - que “todo mundo tem doença na aldeia” / Isadora Stentzler

À tarde e no mesmo dia, o filho do cacique, Marcelo Kupju Alvez, de 31 anos, também foi ao mesmo mercado. “Eu fui na sexta-feira pagar as continhas que estava devendo. Entrei na fila. Eu estava de máscara. E quando ia entrar eu coloquei [álcool em] gel nas mãos, mas a moça [atendente] veio para mim e falou que ‘diz que não é para atender os índios, que chegou um decreto’. Ela me mostrou um papel que estava nas paredes e disse que não podia mais atender os índios, porque teve aqui dois casos de Covid. E acho que foi por causa disso que ela não deixou mais. Acho que ela pensou que eu também tinha”, conta, dizendo que ficou com vergonha da situação, já que haviam outras pessoas no estabelecimento. 

Do Supermercado Paulista, Marcelo foi ao Supermercado Chapecó, na mesma cidade, onde também ouviu sobre o decreto, mas conseguiu atendimento. “Ele [atendente] falou assim: ‘A gente não pode atender os índios, mas você fica escondido, fica ali, me fala o que você quer’. E ele pegou o que eu precisava”, conta Marcelo. “Me senti como se eu fosse um fugitivo”, diz.

Segundo o cacique Joãozinho, é a primeira vez que indígenas foram impedidos de comprar nos estabelecimentos da cidade.


Filho do cacique, Marcelo Kupju Alvez, de 31 anos, disse que, após ter atendimento negado em um mercado, foi atendido em outro, mas escondido: “Me senti como se eu fosse um fugitivo" / Isadora Stentzler

Decreto

O decreto que os responsáveis pelo Supermercado Paulista e Supermercado Chapecó se referiram aos indígenas foi o 1.343, do dia 3 de julho. O decreto, no entanto, apenas alterou a redação de outro, o de número 13.33, incluindo os indígenas no grupo de risco.

“Fica mantida a proibição da circulação de pessoas que compõem o grupo de risco (idosos, crianças, portadores de doenças crônicas, gestantes, lactantes), salvo em situações de necessidades justificadas, recomendando-se que estes utilizem os serviços comerciais até às 14h”, determina o texto, citando, no artigo seguinte, que indígenas também fazem parte desse grupo. 


Decreto que apresentaram aos indígenas como justificativa para o não atendimento / Divulgação

Orientação

Mas segundo a responsável pelo Supermercado Paulista, Eliane Teixeira Moreira, houve uma orientação vinda de uma fiscal da prefeitura, que, ao falar sobre o novo decreto, orientou a não atenderem os indígenas. “Na sexta-feira pela manhã, recebi a orientação de que idosos poderiam estar entrando [no Supermercado], mas os indígenas não, porque estavam na área de risco. Eu questionei o porquê, e ela falou que não [poderia], dizendo que são da área de risco”, frisou a responsável.

Elaine não disse qual o nome da fiscal que teria dado a orientação, mas que se sentiu desconfortável porque “sempre atendeu os indígenas” da aldeia e que “não foi racista”. “Seguimos orientação repassada por servidor fiscal do município. (...) Lamentamos o ocorrido, mas não podemos descumprir o decreto local e as orientações dos fiscais do município. Todos estamos sendo afetados pela pandemia. É um momento difícil que temos que superar”, destacou em nota.

Gerente do Supermercado Chapecó, com quem a reportagem conversou via rede social oficial e que não quis se identificar, também disse que fiscais pediram para não atender indígenas. “Os fiscais mandaram proibir, mas no decreto eles se encaixam igual os idosos e poderiam circular até às 14h”, destacou. Em relação ao indígena que foi ao estabelecimento, o gerente disse que “foi atendido super bem”, mas que havia ido ao Supermercado às 15h30, o que descumpria o horário do decreto, que limitava até às 14h. “Eu atendi porque achei injusto, porque eles moram longe, pode ser que no primeiro comércio que ele foi não deixaram entrar e isso deixou ele constrangido”.

Prefeitura

Questionada sobre funcionários terem passado a orientação aos comércios e se seria aberto processo administrativo ou se tais funcionários seriam afastados, a advogada da prefeitura de Diamante d’Oeste, Deisiane Vargas, não respondeu.

Ela apenas disse que houve um “erro de interpretação” dos decretos publicados pelo município e que “não houve a intenção de ser racista”. De acordo com Deisiane, na segunda-feira, dia 6 de julho, também foi realizada uma reunião entre a equipe da Vigilância Sanitária e fiscais para esclarecimentos.

Intervenção

Segundo o promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná (MPE) Pedro Pires Domingues Wanderley, foi solicitado ao prefeito do município, Guilherme Pivatto Junior (PPL), que orientasse à Associação Comercial a atender os indígenas normalmente. Ele também entrou em contato com a Comissão Jurídica Guarani para dar suporte jurídico à aldeia em um pedido de indenização e para ajuizar ação pelo crime de racismo.

“Entendo que seria possível a caracterização de um crime de racismo, impedir o acesso desse indígena. Até porque esse decreto apenas orienta. Ele não pode impedir um idoso, uma gestante, que também são grupo de risco, de entrar. E mesmo que fosse determinado isso, não poderia fazer, ao meu ver, seria inconstitucional. Então haveria sim o crime de racismo”, analisa o promotor. “Nesse caso, foi uma ótica distorcida de entender que, por ser grupo de risco, eles estariam levando o risco para a cidade, mas é o contrário. O indígena, como grupo de risco, é vítima. Ele pode sofrer mais gravemente a consequência da pandemia”, explica.

Wanderley disse que o estabelecimento pode responder por danos morais e quem impediu o acesso ou quem orientou para o não atendimento a indígenas, por crime de racismo, com pena prevista de um a três anos.

A Procuradoria Geral da República (PGR) também instaurou um procedimento para apuração do caso de racismo e deve ser acompanhado pelo procurador de Pato Branco, Walter José Mathias Junior. A Notícia de Fato pode ser convertida em Procedimento Investigatório Criminal ou Inquérito Civil.

Edição: Lia Bianchini