Paraná

Solidariedade

Artigo | O MST e a solidariedade que chega em forma de alimento

A soberania de um povo passa pela sua liberdade e esta implica, necessariamente, na forma de produção de sua alimentação

Curitiba (PR) |
"A “agri-cultura” nutre o respeito aos povos e suas diversidades culturais e dá autonomia produtiva" - Arquivo MST

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é um movimento resultante da luta histórica do campesinato brasileiro, pelo direito à Reforma Agrária, concretizando a democratização do acesso à Terra de Trabalho, e não à Terra de negócio. Luta esta, forjada no tempo histórico, tendo na Resistência uma palavra que molda e traz a esperança da terra conquistada e de uma Reforma Agrária como consequência. Resistência que insiste em dizer “não” às desigualdades sociais e “sim” à busca constante por uma sociedade igualitária, tendo na Terra conquistada a viabilidade dessa igualdade. Terra que no Brasil, historicamente, por poucos foi “cercada” em grandes propriedades, deixando muitos sem acesso a ela, tendo essas cercas, o amparo “da lei” que as protegeu e também aos homens que a cercaram. História essa tão bem resumidas nas belas palavras de Dom Pedro Casaldáliga, quando diz: “Malditas sejam todas as cercas! Malditas todas as propriedades privadas que nos privam de viver e de amar! Malditas sejam todas as leis, amanhadas por umas poucas mãos para ampararem cercas e bois e fazer a Terra escrava e escravos os humanos!”.

Esta Terra de Trabalho representa para os camponeses deste Movimento a agricultura, palavra que traz em si a junção de “agri”, que significa campo, mais “cultura”, que abarca o conhecimento, as crenças e os hábitos camponeses. Nessa lógica produtiva desenvolvida por meio da agroecologia, a agricultura representa a vida, porque dela brota todo o alimento para matar a fome dos homens respeitando La Madre Tierra, termo este de uma beleza extraordinária, usado pelos campesinos da América Latina para definir a Terra que produz alimentos e que do seu ventre vem a vida. Propósito esse, dos camponeses do MST.

Tudo isso vai à contramão de homens que, vivendo na lógica da mercadoria e do lucro, tratam La Madre Tierra como Terra de negócio, subjugada à produção de monoculturas em um “agro-negócio”, que exige a depredação do solo, das floresta, dos animais, das águas e do ar. E mesmo com generosidade da Terra para com esses homens, dando-lhes lucros exorbitantes, eles a retribuem envenenando-a, com o uso demasiado dos agrotóxicos e, assim, envenenando também a vida de todas as espécies.

Que lógica é essa, que parte dos homens “aprendeu” a aceitar como desenvolvimento, crescimento e riqueza do Brasil? A despeito da dita “riqueza” produzida pelo agronegócio do país e do discurso de segurança alimentar por ele promovido, nesse tempo de exploração exacerbada do capitalismo aos trabalhadores e de pandemia provocada pelo coronavírus - em que as dificuldades financeiras são aprofundadas pelo desemprego - um 1 quilo de feijão, produto de base alimentar da mesa brasileira, chega a custar ao trabalhador mais de R$ 10 no supermercado. A sociedade não tem visto caminhões de soja, de carne bovina chegarem à população carente dos bairros periféricos das cidades. É para esta lógica da desigualdade social que o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra diz “não” e chama para si, em conjunto com outros movimentos sociais, unidos à Via Campesina, o conceito de Soberania Alimentar.

Esse conceito, definido pela Via Campesina em sua forma, nasce como contraponto ao conceito de Segurança Alimentar estabelecido pela FAO - Food and Agriculture Organization of the United Nations - no contexto da Revolução Verde, que trazia em si a promessa de resolver a fome no mundo, com todo o seu aparato tecnológico e o seu pacote de insumos. Entretanto, o que a humanidade viu ao longo dos anos com o discurso de segurança alimentar foi a expropriação dos povos tradicionais - camponeses, indígenas, quilombolas etc -, dos seus territórios que foram - não sem luta - perdendo espaço para as monoculturas e o envenenamento do solo, da água e do ar pelo uso dos agrotóxicos. Na contramão desse processo, a Via Campesina diz que soberania alimentar é “o direito de cada nação a manter e desenvolver os seus alimentos, tendo em conta a diversidade cultural e produtiva”.

Por este viés, a “agri-cultura” nutre o respeito aos povos e suas diversidades culturais e dá autonomia produtiva, mantendo as estratégias de produção, distribuição e consumo de alimentos de forma agroecológica. Portanto a soberania de um povo passa pela sua liberdade, e esta implica, necessariamente na forma de produção de sua alimentação. O conceito de Soberania Alimentar é um princípio norteador da luta e do trabalho camponês.

É na distribuição que vamos doravante tocar. Ao longo dessa pandemia, o MST tem desenvolvido ações de distribuição de alimentos em várias regiões do país, em uma campanha que mostra o espírito do campesinato brasileiro, o da solidariedade, evidenciando que os camponeses vinculados a esse Movimento não doam o que sobra e, sim, repartem o que têm. Foi com esse espírito que as famílias camponesas que foram assentadas e também acampadas, em conjunto com outros agricultores camponeses de 17 municípios do Noroeste do Paraná, juntamente com entidades sindicais e religiosas, se uniram nos dias 27 e 28 de junho de 2020 em prol da doação de alimentos a famílias carentes que vivem em bairros das cidades de Maringá e Sarandi e também em Santa Isabel do Ivaí e Loanda. Ao todo, 12 toneladas de alimentos foram distribuídas, incluindo arroz, feijão, derivados de leite, legumes, verduras e etc.

Esses alimentos, que foram e com certeza continuarão a ser distribuídos, são frutos resultantes da Reforma Agrária no Noroeste do Paraná. A partir de meados da década de 1980, essa região passa por uma nova fase de ocupação, e essa gênese da “fase moderna” da ocupação esteve vinculada ao contexto histórico paranaense de luta pela terra liderada pelo MST. A partir dessa década, as constantes ocupações, os vários embates envolvendo fazendeiros, governo do Estado e MST vão “mudar os ares” da Região Noroeste no que se refere à Reforma Agrária. Os constantes conflitos ligados à violência contra os agricultores foram fatos que contribuíram para que o processo de aceleração da Reforma Agrária caminhasse na região. Ao longo da década de 1990, intensifica-se o processo de luta pela terra realizado pelos camponeses agricultores, que resultou em vários assentamentos de Reforma Agrária. Consideramos relevante o esclarecimento que o Noroeste do Paraná - Microrregião Geográfica de Paranavaí - nos seus 29 municípios, conforme dados do INCRA de 2017, possui 32 assentamentos de reforma agrária com um total de 1.635 famílias assentadas. Esse é um número relevante e considerável de pessoas envolvidas no processo de 'reforma' agrária na região.

Embora o grande número de assentamentos do Noroeste tenha mudado os aspectos regionais de poucas grandes propriedades para inúmeras pequenas propriedades, a realidade agrária dos assentamentos regionais tem seus percalços e suas dificuldades. É pensando em estratégias para superar os obstáculos, dentro de uma economia local que até meados dos anos 1990 encontrava-se estagnada com comércio pouco desenvolvido e uma indústria quase que inexistente, que os camponeses têm lutado por políticas públicas para auxiliá-los no desenvolvimento rural de seus assentamentos, o que torna o Noroeste do Paraná um território camponês conquistado como fragmento da luta histórica do campesinato no Brasil.

Aqui é importante lembrar que no mundo globalizado, a força do lugar permanece, como já advertiu o geógrafo Milton Santos. No cotidiano do lugar é que a solidariedade se faz presente. Vale ressaltar que não teria ocorrido doações de alimentos nas cidades - não sendo a primeira vez - se ali no Noroeste não tivesse ocorrido processos embrionários de uma Reforma Agrária.

O significado dessas doações está aclarado nas palavras do jovem Edson Fortunato, assentado no Noroeste do Paraná, quando ele diz que: “o objetivo maior das doações de alimentos é prestar a solidariedade e trabalhar a ideologia de uma nova sociedade”. Nesse sentido, essa nova sociedade será advinda dos pressupostos de uma agricultura baseada no respeito à terra, que mude os homens e seus hábitos na maneira de agir no planeta. Quiçá, pós-pandemia possamos ter também uma mudança profunda na estrutura social, que perpasse a consciência, costumes, valores e hábitos nas relações dos homens em sociedade. Que essa mudança seja capaz de trazer o homem novo, aquele do qual já falava Che Guevara, quando dizia que para mudar o mundo é necessário uma transformação da sua consciência. Tarefa essa que o MST, enquanto Movimento Revolucionário, tem feito, não modificando apenas o mundo, mas o homem que nele atua. Nesses tempos das complicações de falta de alimentação, exacerbada pela pandemia, que o modelo produtivo do agronegócio se desnuda, mostrando que o desenvolvimento no campo necessariamente terá que passar pela Reforma Agrária, que é premente, urgente e necessária.

Portanto, o que é esse Movimento? Tratarei de dizê-lo em poucas palavras, visto que os grandes homens e mulheres pensadores da nossa história já o definiram, mesmo assim, na teimosia de alguém que se criou intelectualmente tendo uma grande admiração a esse MOVIMENTO, o digo.

O MST é uma resistência heróica.

O MST é educação, conhecimento, companheirismo e formação de seres pensantes e atuantes.

O MST é a roda de prosa, em que nela tudo se discute e tudo se resolve.

O MST é o acolhimento em cada casa camponesa, seja ela no acampamento ou assentamento.

O MST é acolhimento daqueles que por parte da sociedade são considerados “diferentes”.

O MST é a representatividade da luta camponesa por uma sociedade justa e igualitária.

O MST é também, nesses tempos de pandemia, Movimento da Solidariedade que brota da Terra.

Daqui da minha urbanidade, fica ao MST e aos camponeses do Noroeste do Paraná o meu agradecimento... 

Obrigada pela existência e pela resistência!

*Adélia Aparecida de Souza Haracenko é professora do Departamento de Geografia da Universidade Estadual de Maringá - UEM

Edição: Lia Bianchini