Rio de Janeiro

Mobilização

Opinião | Um horizonte ecossocial para a América Latina: a proposta do Pacto do Sul

Iniciativa tem lançamento online nesta quarta-feira (24); saiba mais sobre o debate e as propostas

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Em um momento em que a América Latina possui o maior grau de concentração de terra no mundo, é prioritário o desenvolvimento de políticas que visem a redistribuição de terras - Mauro Pimentel/ AFP

Durante muito tempo, as elites nos disseram que nem o mercado nem a grande máquina de acumulação capitalista podiam ser detidos. Mas, sim! É possível puxar o freio de emergência quando a vida está em perigo. A crise exposta pela pandemia potencializou as desigualdades e mostra que nosso futuro está em jogo. 

Uma parte da população está trancada, outra parte enfrenta contágio, repressão e fome. Os povos indígenas e afro-americanos estão expostos a uma nova onda de extermínio; a violência patriarcal e racista e os feminicídios aumentaram. Enquanto isso, antigos e novos grupos de poder aproveitam a emergência para garantir que o “retorno à normalidade” ou a “nova normalidade” não os deixe sem benefícios. 

A pandemia é uma tragédia para muitas pessoas, cuja dor compartilhamos. Mas a pausa imposta pela covid-19 ao capitalismo mundial também representa uma enorme oportunidade de mudança: a de construir nosso futuro a partir do cuidado da vida.

Apesar de existirem feridas profundas na natureza, esse freio forçado no capitalismo também significou desacelerar a destruição dos ecossistemas, principalmente, devido à diminuição das emissões de CO2. As classes médias mundiais experimentam coletivamente a possibilidade de viver sem esse consumo exacerbado que causa destruição ambiental e ameaça a própria vida no planeta; que a felicidade e a qualidade de vida têm dimensões mais relevantes do que possuir e acumular coisas, como viver em um tecido de relacionamentos afetivos confiáveis.

Tornou-se evidente que a vida camponesa, os sentidos da comunidade, o cuidado e a reciprocidade são fundamentais para sustentar a vida; que, apesar de vivermos no capitalismo, não vivemos pelo e para o capital. Nos conscientizamos de que o comércio direto, as trocas sem dinheiro e as redes fora dos mercados capitalistas hoje resolvem muitas de nossas necessidades básicas; e sentimos também que elas têm espaço e potencial para o futuro.

Mesmo em ambientes formais, ideias anteriormente inconcebíveis ou consideradas inviáveis, ocupam um lugar central na agenda global. Até agências econômicas como a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) propõem uma renda básica universal, e o Fundo Monetário Internacional recomenda que os governos introduzam um imposto sobre a riqueza, para combater a desigualdade escandalosa e reduzir os déficits fiscais. No Norte Global, movimentos sociais e políticos estão lutando por alternativas ecossociais para salvar o planeta, que articule justiça social e justiça ambiental.

Propostas do Pacto Ecossocial Latino-americano

Retomando propostas elaboradas coletivamente em diferentes contextos, propomos um Pacto Social, Ecológico, Econômico e Intercultural para a América Latina. Este pacto não é uma lista de demandas que dirigimos aos governos. Em vez disso, é um convite a criarmos imaginários coletivos e acordarmos uma direção compartilhada da transformação e uma base para plataformas de luta nas mais diversas áreas de nossas sociedades. 

Convoca movimentos sociais, organizações territoriais, sindicais e de vizinhos, comunidades e redes, mas também governos locais alternativos, parlamentares, magistrados ou servidores públicos comprometidos com a transformação a mudar as relações de força, por meio de plebiscitos, projetos de lei ou muitas outras estratégias com um impacto real para impor essas mudanças às instituições existentes por parte de uma sociedade organizada e mobilizada.

Nesse sentido, os pontos abaixo buscam articular justiça redistributiva, de gênero, étnica e ambiental.

Alguns preveem um maior protagonismo para as instituições públicas e outros se referem mais a práticas e mudanças construídas a partir de baixo e que estão se expandindo horizontalmente:

1. Transformação tributária solidária. Propostas nacionais de reformas tributárias de acordo com o princípio: “Quem tem mais, paga mais; quem tem menos, paga menos”. Inclui-se aqui o imposto sobre herança, grandes fortunas, megaempresas, rendimentos financeiros e, como medida transitória, danos ambientais. Em vez de todos pagarem impostos universais e apenas alguns terem proteção social, propomos que apenas aqueles que têm mais impostos paguem impostos, mas que todos estejamos protegidos;

2. Anulação das dívidas externas dos Estados e construção de uma nova arquitetura financeira global. Nesses momentos extraordinários, justifica-se parar de pagar a dívida externa, como foi feito em 1931/32, e conforme proposto pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), o próprio Presidente da França Emmanuel Macron ou o Papa Francisco. A anulação da dívida externa dos países do Sul Global constitui um primeiro passo de reparação histórica, tendo em vista a dívida ecológica e social contraída pelos países centrais desde o período colonial;

3. Criação de sistemas locais e nacionais de cuidado que coloquem a sustentabilidade da vida no centro de nossas sociedades. O cuidado é um direito e, como tal, deve incluir um papel mais ativo do Estado e das empresas na consulta e na corresponsabilidade permanente com os povos e as comunidades. Isso permitirá combater a insegurança no emprego e obter uma melhor distribuição das tarefas de cuidado, em termos de classes sociais e gênero, uma vez que incidem de maneira desigual sobre as famílias e, nelas, sobre as mulheres. Devemos promover políticas que vinculem o cuidado à proteção social, atendendo às necessidades dos idosos em situações de dependência, crianças, pessoas com deficiências graves e outros indivíduos que não conseguem atender às suas necessidades básicas;

4. Uma renda básica universal que unifique a política social através da introdução de uma renda básica para todos e que substitua as transferências condicionais focalizadas, herdadas do neoliberalismo, a fim de sair da armadilha da pobreza. A própria CEPAL acaba de recomendar isso aos governos latino-americanos. Reduzir a jornada de trabalho sem reduzir os salários, para distribuir tanto o emprego formal como as tarefas de cuidado;

5. Priorizar a soberania alimentar. Em um momento em que a América Latina possui o maior grau de concentração de terra no mundo, é prioritário o desenvolvimento de políticas que visem a redistribuição de terras, acesso à água e uma profunda reforma das políticas agrárias, afastando-se da agricultura industrial de exportação com seus terríveis efeitos ambientais e sociais. Trata-se de priorizar a produção agroecológica, agroflorestal, pesqueira, rural e urbana, promovendo o diálogo de saberes. Fortalecer os mercados camponeses e locais. Criar redes de distribuição de sementes para garantir sua livre circulação, sem propriedade intelectual. Fortalecer redes de distribuição campo-cidade e certificação comunitária entre consumidores e produtores. Promover a propriedade social, coletiva e comunitária da terra, gerando soberania para quem dela cuida e nela trabalha, e protegendo-os da especulação;

6. Construção de economias e sociedades pós-extrativistas. Para proteger a diversidade cultural e natural, precisamos de uma transição socioecológica radical, uma saída planejada e progressiva da dependência do petróleo, carvão e gás, da mineração, do desmatamento e das grandes monoculturas. É necessário avançar rumo a matrizes energéticas renováveis, descentralizadas, desmercantilizadas e democráticas, com modelos de mobilidade coletiva, segura e de qualidade. Lutar contra a financeirização da natureza e buscar um reduzir o risco de colapso climático, uma ameaça mais séria do que a pandemia, como mostram as inundações, secas, deslizamentos de terra e incêndios;

7. Recuperar e fortalecer os espaços de informação e comunicação a partir da sociedade, atualmente dominados pelas mídias corporativas e redes sociais corporativas que estão entre as empresas mais poderosas de nosso tempo. Disputar os sentidos históricos da convivência, a partir de meios cidadãos e populares, mas também da rua, da praça e dos espaços culturais;

8. Autonomia e sustentabilidade das sociedades locais. A pandemia mostrou a fragilidade das cadeias globais de produção e a riqueza dos esforços locais. A enorme criatividade dos povos latino-americanos deve ser a base de mudanças políticas que promovam a autonomia e a sustentabilidade dos territórios e sociedades locais. Significa fortalecer a autodeterminação de povos indígenas, camponeses, afro-americanos e experiências populares de comunidades urbanas em termos econômicos, políticos e culturais; desmilitarizar os territórios e a sociedade como um todo; apoiar mercados locais; democratizar o crédito, apoiar pequenas e médias empresas, a soberania energética local comunitária com base em modelos sustentáveis e renováveis;

9. Por uma integração regional e mundial soberana. É imperativo favorecer os sistemas de intercâmbio local, nacional e regional em nível latino-americano, com autonomia do mercado mundial globalizado que estimulem alternativas ao monopólio corporativo. A introdução de moedas paralelas ao dólar em diferentes escalas, deve permitir uma desconexão relativa da perigosa dinâmica do mercado mundial, fortalecendo as trocas entre os países da região e sua diversificação econômica complementar.

Construção de um horizonte coletivo de transformação 

O Pacto Ecossocial do Sul, lançado no último dia 2 de junho, nasce de um grupo de pessoas, organizações e movimentos sociais de diferentes países da América Latina. Desde então, já reuniu o apoio de aproximadamente 1.700 indivíduos e 350 organizações em toda a América Latina.


Programação de lançamento do Pacto Ecossocial do Sul acontece nesta quarta (24) / Divulgação

Nesta quarta-feira (24) será realizado o lançamento público do Pacto Ecossocial do Sul com a apresentação da proposta e comentários por parte de lideranças comunitárias e sócio-ambientais de diferentes países, tais como Francia Márquez (presidenta do Conselho Nacional da Paz da Colômbia); Rudrigo Rafael, membro da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto do Brasil) e Patricia Gualinga (liderança indígena do Povo Kichwa de Sarayaku da região amazônica do Equador). Também participarão dois ganhadores do Prêmio Nobel Alternativo de fora da região: a filósofa e eco-feminista indiana Vandana Shiva, e a liderança ambientalista Nnimmo Bassey, da Nigéria.

*O Pacto envolve pessoas e organizações de vários países da América Latina. As pessoas de contato, por países, são Maristella Svampa e Enrique Viale (Argentina); Mario Rodríguez Ibáñez, Carmen Aliaga e Ángela Cuenca (Bolívia);  Breno Bringel, Rudrigo Rafael e Vanessa Dourado (Brasil); Lucio Cuenca e Antonio Elizalde (Chile); Arturo Escobar e Tatiana Roa Avendaño (Colômbia); Alberto Acosta, Esperanza Martínez e Miriam Lang (Equador); Jaime Borda e José de Echave (Peru); e Edgardo Lander (Venezuela).

Edição: Mariana Pitasse