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Saneamento em pauta

Artigo | Por que a Cedae precisa se manter pública?

Witzel admitiu que não consegue cumprir o prazo para a privatização, mas companhia continua na mira do governo em queda

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Trabalhadores da Cedae já fizeram diversas manifestações contra a privatização da empresa ao longo dos últimos anos
Trabalhadores da Cedae já fizeram diversas manifestações contra a privatização da empresa ao longo dos últimos anos - Agência Brasil

Na última quinta-feira (18), na primeira conversa do governador Wilson Witzel (PSC) com o presidente da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), André Ceciliano (PT), após a decisão da Casa de iniciar o processo de impeachment contra ele, Witzel falou sobre o rito processual, mas falou também sobre o Regime de Recuperação Fiscal. Segundo ele, o estado não terá condições de vender a Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Estado do Rio de Janeiro (Cedae) até o fim do ano, pois os procedimentos são demorados.

No entanto, na semana anterior, no dia 9, o Governo do Estado do Rio de Janeiro divulgou o Edital de Concessão dos sistemas de abastecimento de água e esgotamento sanitário operados pela Cedae à iniciativa privada. Não é a primeira vez que a Cedae é alvo de cobiça dos neoliberais de plantão que buscam, avidamente, efetivar sua privatização.

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Na década de 1990, mais precisamente nos governos Fernando Henrique Cardoso na Presidência da República e Marcelo Alencar no Governo do Estado do Rio de Janeiro, a privatização do Setor de Saneamento brasileiro e da Cedae no Rio de Janeiro eram metas estabelecidas na agenda neoliberal desses governos assessorados pelo Banco Mundial e Banco Interamericano de Desenvolvimento.

Naquela ocasião, a tentativa de privatização em massa desse importante setor não foi possível porque a Constituição Federal já definia que a titularidade dos serviços de saneamento básico é municipal.

Mas houve uma mudança de interpretação, tendo o Supremo Tribunal Federal (STF) consagrado que nas regiões metropolitanas essa titularidade é compartilhada entre o Estado e os Municípios integrantes da respectiva região metropolitana, sanando definitivamente as dúvidas com relação a esse tema.

Nos governos Lula e Dilma vivemos um período de grande avanço no desenvolvimento das ações de saneamento no Brasil, com os recursos alocados por meio dos Programas de Aceleração do Crescimento (PAC). No mesmo período também foram aprovadas a Lei 11.445/2007 que define as diretrizes do Setor de Saneamento Básico no Brasil e, em 2013, foi aprovado o Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB).

Com o golpe de 2016, que apeou a Presidenta Dilma Roussef da Presidência da República, vimos recrudescer a agenda neoliberal com as propostas de Estado mínimo e as privatizações.

Em atendimento aos neoliberais é editada, ainda no governo golpista de Temer, a Medida Provisória (MP) 844/2018, que por ação articulada entre os movimentos sindicais e populares e os deputados de oposição teve obstruída a sua tramitação, perdendo a validade por decurso de prazo. A vitória foi comemorada por aqueles que defendem a água como um bem essencial à vida e não como mercadoria. Quando ainda comemorávamos a vitória daquela batalha, o governo golpista emitiu a MP 868/2018 que era praticamente uma reedição da MP 844/2018 com pequenas alterações. Mais uma vez a atuação da oposição fez com que a essa MP também fosse derrotada.

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Contudo, os privatistas voltaram à carga com um relatório do Senador Tasso Jereissati sobre a MP 868/2018 fornecendo as bases para que ele elaborasse o Projeto de Lei 3.261/2019. Em dezembro de 2019, entretanto, a Câmara aprovou outro projeto - o PL 4162/19 - de teor semelhante, enviado pelo governo Bolsonaro. Em apreciação pelo Senado, esse projeto de lei encontra-se atualmente na Comissão de Meio Ambiente, aguardando espaço na pauta de votação, o que pode ocorrer a qualquer momento.

Rio de Janeiro

Voltando ao Rio de Janeiro, a Cedae, constituída oficialmente em 1975, é oriunda da fusão da Empresa de Águas do Estado da Guanabara (CEDAG), da Empresa de Saneamento da Guanabara (ESAG) e da Companhia de Saneamento do Estado do Rio de Janeiro (SANERJ). A Cedae opera e mantém a captação, tratamento, adução e distribuição das redes de águas, além da coleta, transporte, tratamento e destino final dos esgotos gerados nos 64 municípios com os quais tem contrato no estado do Rio de Janeiro.

Em 2018, a receita operacional da Cedae foi de R$ 5,6 bilhões e o lucro líquido de R$ 832 milhões, conforme dados extraídos do balanço da Cedae referente aquele ano e publicado no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro em 2019. No ano de 2019 seu lucro líquido foi da ordem de R$ 1 bilhão.

No ano de 2017 o Estado do Rio de Janeiro aderiu ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF) – instrumento criado pelo governo federal para fornecer ajuda aos estados da federação que passavam por grave crise financeira. A ajuda ao Estado do Rio de Janeiro possibilitou que ele contratasse empréstimo como antecipação da receita da privatização da Cedae, figurando a União como garantidora da operação.

A alienação de ações da Cedae foi oferecida como garantia para este empréstimo de R$ 2,9 bilhões obtido junto ao Banco BNP Paribas Brasil S.A., com a previsão de que o recurso deveria ser utilizado prioritariamente no pagamento da folha dos servidores. Nesta operação de crédito, em que a União serviu como garantidora da dívida, Em caso de não pagamento pelo Estado do Rio de Janeiro, a União, como fiadora, poderia quitar a dívida e ficar com parte das ações da Cedae.

O edital de concessão agora lançado, prevendo concessão onerosa, busca, por meio da venda de um patrimônio público que gera lucro, aportar recursos para os cofres do estado, sendo a expressão da adesão do governo estadual à política neoliberal do governo federal.

No entanto, para viabilizar esta operação é necessário que o Projeto de Lei 4162/19 que tramita no Senado, seja aprovado, já que a modelagem proposta pelo BNDES se baseia nesse projeto de lei, mesmo que o mesmo que seja alvo de diversos questionamentos.

No nosso entendimento, esse edital está repleto de irregularidades como o atropelo a diversos itens da Constituição, o desrespeito à titularidade municipal, a ruptura do pacto federativo e outros vários aspectos que certamente suscitarão muitos questionamentos judiciais.

Somos sabedores que o município do Rio de Janeiro, que é responsável sozinho por 80% da arrecadação da Cedae, não concordou e não autorizou esse processo que visa a privatização, como também não o fez o município de São Gonçalo, ambos na região metropolitana.

Já no interior, levantamento realizado pelo Projeto Colabora, mostra que dos 46 municípios fluminenses previstos nos blocos de privatização, ainda há ao menos 18 que não aprovaram em suas Câmaras a autorização para outorgarem ao Estado a competência de contratar concessionárias privadas de saneamento básico, a despeito de enormes pressões do governo Wilson Witzel (PSC).

Por outro lado, com base nas declarações do Conselho de Supervisão do Regime de Recuperação Fiscal do Estado do Rio de Janeiro, divulgado no último no início do mês de junho, não há tempo hábil para se privatizar a Cedae até novembro deste ano, ocasião em que vencerá o contrato celebrado entre o Estado do Rio de Janeiro, a União, e o banco BNP Paribas, o que poderá acarretar a federalização da Cedae.

As contradições deste processo são, portanto, de toda a ordem a começar pela falta de credibilidade de um governo estadual que, por cometer crimes de responsabilidade, teve aberto na última semana o processo de impeachment pela Alerj.

Cabe reafirmar que essa guerra está apenas no começo e assim convidamos todos e todas que acreditam na busca permanente da universalização dos serviços públicos de abastecimento de água e de esgotamento sanitário no Brasil para juntarem-se nesta trincheira de luta.

*Ana Lucia Britto é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e membro da Coordenação Colegiada do  Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS) e Clovis Francisco do Nascimento Filho é presidente da Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros (Fisenge) e membro da Coordenação Colegiada do ONDAS.

Edição: Mariana Pitasse