Rio Grande do Sul

Coluna

A cidade e a universidade na boa luta

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Pesquisadores fazem, em tempos de pandemia, um trabalho de campo na favela de Paraisópolis dizendo: “Favela não é problema, mas solução” - Foto: Yasuyoshi Chiba/AFP
Dá gosto ver estudantes da USP abrindo-se para o diálogo, ouvindo a outra/o outro nas favelas

Os tempos de cólera que vivemos - a pandemia do coronavírus, o ódio e a intolerância ao mesmo tempo - felizmente não param os bons exemplos. Contatado pela professora, arquiteta e urbanista Camila D’Ottaviano, da FAU USP, tomei conhecimento de que há um grupo de mestrandos e doutorandos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo conversando sobre as cidades, as favelas, as políticas públicas urbanas, as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), a nova economia e a Encíclica Laudato Sí do Papa Francisco.

Reúnem-se, conversam, sem deixar de pôr a ‘mão na massa’, como a mestranda Cláudia de Andrade Silva, que está preparando a dissertação ‘Cidade Oculta – Favela como possibilidade para uma nova economia’. Cláudia atua na favela de Paraisópolis, capital São Paulo, e foi convidada pelo Papa Francisco para participar em Assis do Encontro sobre uma nova economia, que seria em abril de 2020, e foi adiado em função da pandemia do coronavírus.

Nas palavras do Papa Francisco, “contra uma economia que mata, é preciso mudar as regras do jogo econômico. Precisamos re-almar a economia”. Na Encíclica Laudato Sí, onde propõe a ecologia integral, na linha do Bem Viver indígena, o Papa Francisco diz que “é preciso lutar contra as causas estruturais da pobreza, a desigualdade, a falta de trabalho terra e casa, a negação dos direitos sociais e laborais. É preciso fazer face aos efeitos destruidores do império do dinheiro”. O Papa fala nos três ‘t’: terra, trabalho, teto, com a frase que resume tudo: ‘Nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos’.

Escreve Cláudia: “Não basta distribuir renda, mas é necessário democratizar o acesso à cidade.” Por isso, ela investiga os caminhos emancipatórios, denunciando a mercantilização urbana, e aponta caminhos alternativos para a economia de mercado. Cláudia descobre a atuação da Igreja católica, especialmente através das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), e analisa “o protagonismo do poder popular, a mobilização popular, a ação coletiva para a construção do projeto alternativo de sociedade”.

Cláudia e outros mestrandos e doutorandos, além dos estudos, fazem, e continuam fazendo, em tempos de pandemia, um trabalho de campo na favela de Paraisópolis, São Paulo capital, dizendo: “Favela não é problema, mas solução”. Isso implica inserir a questão urbana no debate sobre a economia. “É preciso distribuir a cidade. E o direito à cidade passa pela reforma fundiária e imobiliária.” A análise e ação de Cláudia envolvem três momentos: O espaço da moradia precária na produção da cidade; a imagem da favela e o papel da Igreja católica; a favela como possibilidade para uma nova economia.

Conversamos estes dias por mais de três horas, professora Camila, Cláudia e uma dezena de mestrandos e doutorandos da FAU USP, sobre o protagonismo do poder local, o reconhecimento dos territórios populares, a busca de caminhos alternativos para uma nova economia, a Economia Solidária, o papel das Universidades na educação popular, o papel das igrejas e pastorais no contexto urbano, no caso as Comunidades Eclesiais de Base, as CEBs.

Como escreve Cláudia, “o fio condutor das CEBs é a busca pela libertação”. Trocamos ideias e experiências sobre a história de muitos militantes sociais desde os anos 1970, nas CEBs, nas vilas populares, nas favelas, como no meu caso nas vilas da Lomba do Pinheiro, periferia de Porto Alegre. Entraram na roda as CEBs, ligando fé e vida, as Cooperativas Habitacionais e os programas de regularização fundiária nos governos populares de Porto Alegre, o Orçamento Participativo, as lutas e mobilizações por água, postos de saúde, transporte público, vida e dignidade para os moradores. Trabalho e atuação que continuam em 2020 na Lomba do Pinheiro, com as CEBs, o Conselho Popular, o Núcleo de Reflexão Política, as Associações de Bairro e o cursinho popular Kilomba.

O monge beneditino Marcelo Barros fala da espiritualidade sociopolítica libertadora, em texto escrito para grupos do Movimento Fé e Política: “Essa vocação cristã para viver em comunhão é um desafio importante da espiritualidade nas cidades. O deslocamento da Igreja para o mundo dos pobres e o compromisso pela transformação do mundo, vivido junto com os mais explorados e na solidariedade a eles e elas, é lugar teológico privilegiado para a teologia e a espiritualidade. Nessa caminhada, a espiritualidade libertadora é alimentada pela comunhão com os empobrecidos (contra a pobreza injusta) e pela militância persistente e teimosa pela transformação do mundo” (Teologia da Libertação para os nossos dias, Ed. Vozes, 2019).

Dá gosto ver a juventude e estudantes universitários, estimulados por professores, engajados na compreensão do mundo urbano e seus desafios. Dá gosto ver estudantes da USP abrindo-se para o diálogo, ouvindo a outra/o outro nas favelas, e preocupados com o futuro. Dá gosto descobrir o esperançar de Paulo Freire nas suas vozes e escritos. Ainda mais nestes tempos de cólera, quando a solidariedade de novo faz-se presente e viva no cotidiano das favelas, das vilas, das periferias, ante a fome, a miséria e o desemprego crescentes. E quando a luta pela democracia, a luta por uma cidade com igualdade de oportunidades e direitos se afirmam na sociedade.

Não dá para se omitir, não dá para ficar calado. Em todos os espaços e lugares, nas Universidades, nas igrejas, nas escolas, na cidade e no campo. Mas especialmente nas periferias, em Paraisópolis, na Lomba do Pinheiro, VIDAS NEGRAS IMPORTAM!

Edição: Marcelo Ferreira