Rio Grande do Sul

EDUCAÇÃO

Desigualdade expõe limites da EaD

Onde falta saneamento e a presença do Estado, a internet de banda larga, quando chega, é a qualidade necesserária

Extra Classe |
Conforme o IBGE, 40% dos domicílios não possuem banda larga e muitas vezes o acesso à internet se dá apenas por celular - Alexandre Macieira/ Riotur

No último dia 21 de maio, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) publicou um levantamento nacional sobre a Educação a Distância na educação básica pública e emitiu uma nota técnica com uma série de informações sobre a situação real do setor, bem como sobre o quanto as desigualdades sociais limitam o uso de ensino remoto e educação a distância. Na prática, onde falta saneamento e a presença do Estado é precária no atendimento de saúde e segurança, a internet de banda larga, indispensável a essas modalidades, também não chega ou chega sem a qualidade necessária.

O doutor em Educação Gaudêncio Frigotto, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana explica por que no Brasil, diferente do que os meios de comunicação apregoam, o tão chamado salto de cinco anos em seis meses para a expansão da EaD ainda é uma falácia.

No país, existem 12 milhões de analfabetos absolutos. São 38 milhões de alfabetizados funcionalmente (pessoas que apenas escrevem o próprio nome), e 47% das famílias brasileiras são chefiadas por mulheres, na maioria absoluta são mulheres pobres com muitos filhos.


Frigotto: “pais não são professores” / Igor Sperotto

“Então, se as Secretarias de Educação estaduais e municipais legitimarem como aula dada uma aula remota, neste contexto, isso acaba sendo mais uma violência contra os pobres. Porque, em se tratando de Brasil, isso exclui 60% a 70% das crianças”, expõe Frigotto.

Levantamentos realizados no estado de São Paulo, por exemplo, já apontam que mesmo nas famílias com acesso à tecnologia, a frequência às aulas remotas é inferior a 30%.

No Rio Grande do Sul, a rede pública recorreu à distribuição de atividades de forma remota, e nossa reportagem já expôs os limites na edição anterior, em que famílias e estudantes muitas vezes não tinham nem mesmo como imprimir as atividades. O estado passou a transmitir teleaulas utilizando a estrutura da TVE.

“A interação entre os estudantes e entre aluno e professor segue sendo insubstituível. É aquilo que a gente sabe. Não estamos tendo interação porque a tecnologia tem esse limite. Não há acesso rápido aos orientadores e falta a estrutura física da instituição, que é o ambiente propício para a educação, que são a biblioteca, o laboratório. O virtual não supre. A desmotivação é muito grande. E tem muitos alunos que estão padecendo nesse processo”, comenta o também doutor em Educação Gabriel Grabowski, membro do Conselho Estadual de Educação (CEEd-RS).


Nada substitui a interação, alerta Grabowski / Igor Sperotto

Segundo Frigotto, outro aspecto diz respeito ao fato de que no país, mesmo a parcela escolarizada com acesso à tecnologia não possui o traquejo para trabalhar com crianças pequenas em casa, “e elas estão detestando”, o que dificulta também a aprendizagem. “Se isso se legitimar, teremos uma ‘geração coronavírus’, que não aprendeu o que deveria aprender, é o que afirma o educador Luiz Carlos Freitas, e eu concordo”.

Em referência ao parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) que autoriza EaD e aulas remotas durante a pandemia, Frigotto destaca que não é uma normatização. “Reconhece, mas não obriga as aulas remotas e pede que as aulas sejam repostas. “Se a gente estivesse no Uruguai, onde as telecomunicações são públicas e a internet chega nas escolas e nas famílias, ter-se-ia até possibilidade de usar algumas ferramentas, mas não como escolarização”.

No Brasil, ele explica, 62 milhões são os chamados invisíveis, desbancarizados, a quem o Estado teve dificuldades de fazer chegar o auxílio da renda básica por conta da pandemia. “Imagina quantas pessoas na TV dizem que não conseguem entrar no site do governo para fazer o cadastro porque o celular é antigo, outro não tem dinheiro para colocar créditos. Com computador e celular já é difícil, imagina com essas misérias e precariedades”.

Frigotto alerta que pais e professores deveriam dar uma atenção mais crítica a essa “panaceia” anunciada nos meios de comunicação que se faz sobre o uso da tecnologia no ensino, seja educação por meio remoto ou EaD. “Primeiro, que os pais não são professores. Eles podem ser apenas educadores, o que já coloca em xeque também o home schooling, uma modalidade defendida por setores ultraconservadores da sociedade”.

Estudo aponta gargalos tecnológicos

No estudo realizado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), os dados foram obtidos graças à capilarização nacional de suas 52 entidades filiadas de todo o Brasil para colher informações. O levantamento indica a completa suspensão das aulas nas escolas da educação básica pública para reduzir os efeitos da interrupção das aulas nesse período de quarentena e também em decorrência das pressões advindas do mercado privado de educação do país. Com isso, muitas redes públicas de ensino estão recorrendo à oferta de EaD, aqui considerada como toda forma de educação não presencial.

Em diagnóstico preliminar, confirma a realidade educacional dos dados de desigualdade e que resultam diretamente na infraestrutura de acesso às redes de internet nas escolas brasileiras. Com base em dados obtidos a partir da Pnad 2018, pesquisa amostral de domicílios do Ibge, o laboratório de dados e narrativas da Favela da Maré, no Rio de Janeiro, (Data_Labe) revelou em publicação recente que o Brasil tem cerca de 40% de domicílios que não possuem banda larga fixa, com acentuada desigualdade entre as regiões do país (tabela 01, à direita).

A cobertura de acesso à internet no Brasil cai ainda mais quando a pesquisa indica o número de pessoas que a ela tem acesso somente pelo celular, atingindo o patamar de 45,5%, (tabela 02, à direita).

Apesar desse quadro de tamanha desigualdade, o levantamento da CNTE, a partir da autodeclaração das entidades afiliadas e dados consolidados no último dia 14 de maio, demonstra que a grande maioria das redes públicas de ensino do país está recorrendo às aulas remotas nesse momento de pandemia de Covid-19 (gráfico 01, à esquerda).

A imposição das aulas remotas pelas redes públicas de ensino, em grande e expressiva maioria dos casos, não se deu a partir de processos negociais de diálogo com a comunidade escolar e tampouco com os sindicatos. Chama a atenção que cerca de dois terços da normatização do recurso à EaD nas redes de ensino sequer passaram pelos Conselhos de Educação (gráfico 02, à direita).

A educação remota nas redes públicas do país ainda não encontra previsão legal ou qualquer regulamentação normativa no que se refere ao aproveitamento dessa modalidade de ensino na contabilização como dias letivos efetivamente cumpridos no calendário escolar.

Quando somados os casos em que não há previsão legal junto com aqueles que ainda se encontram em debate, percebe-se que mais de 60% das redes ainda não contam com esse anteparo legal para considerar essas atividades remotas como dias letivos (gráfico 03, à esquerda).

Chama a atenção o recurso às aulas remotas e atividades não presenciais na etapa da Educação Infantil, atingindo quase 50% das redes públicas de ensino no Brasil, conforme levantamento da CNTE e como se pode verificar no (gráfico 4, à direita).

A nota técnica da CNTE conclui que o quadro de imposição de aulas remotas e não presenciais nas redes públicas da educação básica brasileira, feita pelas gestões estaduais, municipais e distrital de educação, além de desconsiderar a equidade no acesso à internet no país e a pactuação junto às entidades sindicais de educadores e comunidade escolar em geral, incorre em outra grave lacuna para a implementação de EaD: a formação para professores no uso de computador e internet no Brasil praticamente inexiste.

Dados obtidos também pelo Data_Labe, a partir de informações do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (cetic.br), indicam que 58% das escolas em áreas urbanas no Brasil nunca ofereceram formação a nenhum de seus docentes.

Edição: Extra Classe