Segurança Pública

Com Polícia Federal sob suspeita, família de Marielle luta contra federalização

Ligação dos Bolsonaro com milicianos acusados pelo crime gera desconfiança de que presidente pode intervir no caso

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Marielle Franco e Anderson Gomes foram assassinados em março de 2018 - Foto: Divulgação

Após mais de dois anos de investigação do assassinato da vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) irá julgar a federalização da apuração do caso.

Na prática, na próxima quarta-feira (27), os magistrados decidirão se o caso sai do controle da Polícia Civil e do Ministério Público (MP-RJ) do Rio de Janeiro e passa para as mãos da Polícia Federal. A família da parlamentar e o PSOL, seu partido, são contra.

O pedido de federalização do caso foi feito pela ex-procuradora-geral da República, Raquel Dodge, em seu último ato à frente da Procuradoria Geral da República (PGR), em setembro de 2019.

Em janeiro deste ano, de acordo com o jornal O Globo, promotores do MP-RJ enviaram um ofício ao STJ afirmando que a magistrada provou “balbúrdia processual” e “prejuízo incomensurável” à investigação do crime. O documento é mantido em segredo de justiça, mas foi acessado pelo diário carioca.

Dodge, ainda em seu pedido de federalização, justifica que no Rio de Janeiro falta “isenção das autoridades” e há “má conduta policial”. Além disso, a magistrada justifica que o caso sofre com morosidade por “inércia dos órgãos estaduais”.

Por fim, a ex-procuradora sentencia que Domingos Brazão, ex-vereador e conselheiro do Tribunal de Contas do Estado (TCE), seria o mandante do assassinato. Para o MP-RJ, ainda não há uma conclusão sobre quem ordenou a execução.

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Desde que se tornou público o pedido de Dodge, a família de Marielle Franco e o PSOL se posicionaram contrários à ida do processo para Brasília. O motivo são os laços da família do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) com diversos suspeitos de envolvimento com o crime.

“Esperamos que o STJ tenha a prudência e responsabilidade para não votar pela federalização. Acreditamos que não há razões técnicas para votar pela federalização e há razões políticas para não desejar isso e estar muito preocupado com a federalização”, afirmou Mônica Benício, viúva de Marielle Franco, na manhã desta terça-feira (26).

Benício participou do “Café com o MST”, live promovida pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que teve entre os participantes o deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ) e também a ex-Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat.

As recentes revelações feitas pelo ex-ministro da Justiça Sérgio Moro, que dão conta da tentativa de Bolsonaro de intervir na Polícia Federal, são apresentadas como justificativa para Freixo, que demonstrou preocupação no fato da investigação ter de “partir da estaca zero”, caso siga para Brasília.

“A Polícia Federal é um péssimo caminho, é muito triste a intervenção na Polícia Federal. É muito grave o que está acontecendo e é importante que a sociedade faça pressão e que amanhã a gente saia vitorioso. Amanhã não vamos conseguir nada, só não queremos ser atrapalhados”, explica o parlamentar.

Para a ex-Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, transferir da Justiça Comum para a Justiça Federal sem concluir a investigação é "trocar seis por meia dúzia".

"O caso da Marielle tem algumas coisas que precisamos apontar, é um caso de gravíssima violação dos direitos humanos e um atentado contra a democracia. Primeiro, a investigação anda e agrada a família, que tem interlocução com os investigadores. Outro elemento é que você analisa o Direito a partir de fatos concretos, a Polícia Federal está completamente dominada”, afirma Duprat.

Milicianos

Para Freixo, o fio que liga a família Bolsonaro com os milicianos é Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro, que é acusado pelo MP-RJ de coordenar um esquema de rachadinha no gabinete do parlamentar, que era deputado estadual na época do crime e que teria relações com o Escritório do Crime, de onde Ronnie Lessa e Elcio Queiroz teriam recebido a ordem para executarem Marielle Franco e Anderson Gomes.

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“A prisão do Ronnie Lessa é a prisão de um setor do crime no Rio de Janeiro que nunca foi investigado. Para que se tenha uma ideia, o nome desse grupo era ‘Escritório do Crime’. Um grupo que todo mundo sabe onde fica, quem é, mas não é investigado. O caso Marielle não é uma investigação simples, mas não aceitamos a demora, são dois anos sem sabermos quem é o mandante. O Lessa não matou por ódio, ele foi mandado, ele é profissional, mata por dinheiro. Não é crime de ódio, é crime político”, explica Freixo.

Acusado de ser o executor, Lessa, que está preso desde 26 de outubro de 2018, é vizinho de Jair Bolsonaro. Adriano Magalhães da Nóbrega, ex-oficial do Bope, é apontado como chefe do Escritório do Crime e já foi homenageado por Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) em 2003 e 2005. A última condecoração foi entregue para o ex-militar na prisão, onde ele cumpria pena por homicídio.

Assassinado no dia 9 de fevereiro deste ano, após uma operação policial que tentava capturá-lo na Bahia, depois de um ano foragido, Adriano da Nóbrega é figura-chave para compreender diversos crimes, mas também para entender a relação do clã Bolsonaro com as milícias cariocas.

O advogado do ex-agente do Bope, Paulo Emílio Catta Preta, em entrevista ao jornal O Globo, levantou a possibilidade de que seu cliente tenha morrido por saber demais. Porém, não especificou os segredos de Nóbrega. "Ele me disse assim: 'doutor, ninguém está aqui para me prender. Eles querem me matar. Se me prenderem, vão matar na prisão. Tenho certeza que vão me matar por queima de arquivo'. Palavras dele", afirmou o defensor.

Todos esses elementos estarão em jogo na audiência do STJ na próxima quarta-feira. Para a família, sobra angústia. “É um momento muito dramático para a gente, amanhã acontecerá uma decisão difícil e ficamos ansiosos para saber o resultado. É muito injusto que a gente precise passar por mais essa dor e sem poder estar presente”, finaliza Mônica Benício.

Campanha

O Instituto Marielle Franco e a Coalizão Negra por Direitos lançaram, no dia 20 de maio, uma campanha contra a federalização da investigação do assassinato. A ação já conseguiu 100 mil assinaturas e adesão de 150 movimentos.

Edição: Leandro Melito