Rio de Janeiro

Federalização não

"Com Bolsonaro, qual é a confiança de que a PF vai investigar?" diz viúva de Marielle

STJ decide nesta quarta (27) sobre a federalização do caso; familiares e movimentos sociais se posicionam contra mudança

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Monica Benicio
Viúva de Marielle, Monica Benicio está entre as lideranças que pedem para que as investigações sobre o assassinato da vereadora permaneçam no Rio de Janeiro - Cleia Viana/Câmara dos Deputados

Nesta quarta-feira (27), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julga se as investigações sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco (Psol) e do motorista Anderson Gomes devem sair das mãos do Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) e da Polícia Civil para serem conduzidas pela Polícia Federal (PF). 

Contrárias à federalização, as famílias das duas vítimas, as viúvas Monica Benicio e Agatha Reis, o Instituto Marielle Franco, a Coalizão Negra por Direitos e mais de 150 movimentos e organizações criaram a campanha “Federalização Não”, que já colheu mais de 100 mil assinaturas para entregar aos ministros do STJ.

Em entrevista ao Brasil de Fato, a viúva de Marielle, Monica Benicio, apontou as razões para que o caso continue no Rio de Janeiro e falou dos riscos de o caso ficar a cargo de uma polícia que está sofrendo seguidas tentativas de instrumentalização para os interesses do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) - como o próprio já afirmou em pronunciamento. 

::"Bolsonaro não tem compromisso com a humanidade", responde mãe de Marielle Franco::

Brasil de Fato: Quais são os argumentos para que se defenda que a permanência da investigação do crime no Rio de Janeiro?

Monica Benicio: Esse é um momento de muita preocupação com a possibilidade da federalização. Se acontecer, significa que o processo sai dos cuidados do MP-RJ e da Polícia Civil e vai para a competência da PF. Temos dois anos e dois meses de uma investigação que está em curso. Se o caso é federalizado, não sabemos quem da PF assume. Essa pessoa precisaria se atualizar de todo o inquérito, o que não é pouca coisa, já que o volume de informações é gigantesco. 

O processo volta ao ponto zero?

Não chega a ser um recomeço, porque a PF, no deslocamento de competência, ficaria com um processo que já está em andamento, mas teria que se atualizar de tudo o que aconteceu, uma vez que não atua e não tem conhecimento diretamente dos fatos. Do ponto de vista jurídico e técnico, a federalização não se justifica. Pouquíssimos casos no Brasil tiveram esse processo de federalização e o caso da Marielle não tem os requisitos básicos para o deslocamento de competência, teria que haver provas de desinteresse do MP-RJ nas investigações, interesse em atrapalhar as investigações ou incapacidade técnica de não conseguir conduzi-las. Esses critérios não ocorrem. É claro que dois anos e dois meses é muito tempo, mas existe o diálogo das famílias com o MP-RJ e a Polícia Civil. Gostaríamos que todos os envolvidos estivessem presos, mas o atirador e o motorista foram presos na véspera de o caso completar um ano. E vão a júri popular. Portanto, existe um processo sendo tocado a partir de provas.

E há, sobretudo, a preocupação política?

Sim. A grande preocupação é que desde o ano passado o nome da família Bolsonaro é mencionado publicamente em possíveis relações e “coincidências” entre aspas com o caso da Marielle. Quem tem que provar se existe relação direta da família Bolsonaro com o caso Marielle é a investigação, não cabe a nós especular sobre isso. De fato, o que se tem até agora é que não há. Mas é muito preocupante que [o presidente Jair] Bolsonaro declare publicamente que quer, sim, intervir na PF, especialmente aqui no Rio de Janeiro. Ele menciona o caso da Marielle sempre com muito desrespeito e sem nenhum tipo de compromisso público. Nosso receio é com essa imparcialidade na investigação, porque sempre defendemos que ela seja realizada de forma transparente, com a elucidação do caso e dos fatos, com a prisão dos responsáveis, independentemente de nomes, sobrenomes e cargos que ocupem.

Como familiares e amigos receberam a fala do ex-ministro Sergio Moro, na saída do governo Bolsonaro, sobre a intervenção do presidente da República na PF?

Moro deixou muito clara a intenção do Bolsonaro de intervir na PF por motivos políticos. E aí, Bolsonaro vai a público e diz que é isso mesmo e ainda cita o caso da Marielle. Ele afirma, inclusive, que pediu à PF para ir até Mossoró (RN) falar com Ronnie Lessa, suspeito de ser o atirador, para interrogá-lo e que ele, Bolsonaro, tem uma cópia desse interrogatório.

Esse governo é o oposto de tudo o que a Marielle representa e ele é altamente desrespeitoso à memória dela. Qual é a confiança de que essa polícia vai investigar e vai entregar um resultado final comprometido com a verdade?

A entrevista de Sergio Moro soou como novidade?

Novidade foi ele vir a público falar disso. Moro tem participação muito grande no caos em que estamos mergulhados hoje, não existe nenhum ato de coragem ali, foi apenas um dos ratos que resolveu abandonar o navio antes que ele afunde, uma tentativa de salvar a imagem de integridade que Moro acredita ter. Mas ele evidenciou algo muito importante, um presidente não pode achar que a PF é uma polícia privada e que vai servir aos interesses de sua família, ele [Bolsonaro] diz isso muito claramente, que quer a PF para proteger sua família. Proteger é uma palavra educada, ele usou palavrões na reunião para falar disso abertamente.

Procuradores têm afirmado que é evidente a ingerência de Bolsonaro na PF e que esse fato pode ter como desdobramento o impedimento de mandato.

Há tanta coisa errada no governo do Bolsonaro... Em 2016, por muito menos Dilma Rousseff (PT) sofreu um impeachment misógino. Temos hoje uma sociedade que flerta claramente com o fascismo, e isso precisa ser dito com todas as letras. Não é possível que a gente continue aturando um presidente como esse, altamente desrespeitoso com a população brasileira.

Você assistiu ao vídeo da reunião de Bolsonaro com ministros, divulgado por decisão do Supremo Tribunal Federal a pedido da defesa de Moro?

Vi. É de lamentável a muito preocupante, uma situação dramática e com um presidente tão desqualificado. Fico preocupada como brasileira e fico preocupada como viúva da Marielle, pelo que ele pode fazer para atrapalhar as investigações sobre o assassinato.

Há um mês, inclusive, Bolsonaro comparou a facada que levou durante à campanha eleitoral de 2018 à morte de Marielle...

Ele é covarde com esse discurso e desqualificado para o cargo que ocupa. Todas as vidas têm o mesmo valor, não deveríamos estar hierarquizando dor nem vida. Mas não é burrice, ele faz para provocar confusão, o caso dele foi concluído, a PF investigou e concluiu o caso. Inclusive, Bolsonaro não quis recorrer, ele aceitou o resultado. O Adélio, autor da facada, foi detido, preso e julgado. O resultado final não foi o que Bolsonaro desejava, um grande plano mirabolante da esquerda para tentar assassiná-lo. Mas não é razoável que ele coloque os fatos dessa maneira agressiva, ele diz que a vida do presidente tem um valor, como se a vida dele fosse mais importante que a vida das demais pessoas e a da Marielle. Foi a vida da minha mulher que foi ceifada.

Não é possível que um chefe de Estado fale do assassinato de uma parlamentar da maneira como ele faz, porque ele fala contra a democracia do Brasil.

A família de Marielle sempre falou da necessidade de se manter a investigação no Rio de Janeiro. Mas nesses 800 dias, com mudanças de governo, em algum momento se pensou que seria melhor a federalização?

Eu mesma, no início das investigações, cheguei a pedir que o caso fosse federalizado, partindo de um entendimento de que o assassinato da Marielle foi um atentado contra a democracia e uma grave violação de direitos humanos.

O ministro Raul Jungmann [ministro de Segurança Pública no governo de Michel Temer] era com quem eu tinha diálogo estabelecido diretamente para acompanhar o andamento das investigações. Foi instaurado por ele junto com Raquel Dodge [na época, procuradora-geral da República] a determinação para a PF fazer a investigação da investigação. Esse processo foi encerrado, a PF apresentou as obstruções que encontrou no meio do caminho. Isso foi em 2018, o MP-RJ ainda não havia apresentado evidências de que o processo estava em andamento, mas agora pelo menos uma vez por mês o curso das investigações é apresentado em reunião com a família e na véspera da execução completar um ano tivemos as prisões do Ronnie Lessa e Élcio Queiroz. Era um contexto em que não era um governo de Jair Bolsonaro e eu não estava convencida do andamento das investigações aqui.

Em novembro de 2018, Jungmann disse em entrevista que tinha “mais que certeza” do envolvimento de agentes públicos e políticos entre os autores do crime...

Não resta dúvida de que foi um crime político, por isso o que precisa ser revelado e identificado pelas investigações é quem foi o mandante. Ou vamos entender que o Estado brasileiro passa a imagem para o país e para o mundo de que se pode, sim, cometer assassinatos na certeza da impunidade. Quem articulou isso estava muito certo da impunidade e respaldado do lugar de poder que ocupa.

A morte da Marielle potencializou a candidatura de mulheres negras em partidos de esquerda. Por outro lado, vemos o Poder Executivo na capital fluminense, no estado e no país altamente destrutivos. Temos também um fato novo, que foi a retirada do deputado federal Marcelo Freixo (Psol) de sua candidatura à Prefeitura. Como enxergar a luz no fim do túnel?

Não perder a esperança é fundamental. Como exercício de poder, esse governo está muito interessado que as pessoas percam a esperança em uma sociedade mais justa e igualitária justamente porque um povo sem esperança é mais fácil de ser dominado.

A esperança é ameaçadora para um governo fascista. Precisamos primeiro entender que o movimento do Freixo de retirar a candidatura tem como objetivo unificar a esquerda. Tem muita gente fazendo um trabalho de forma coletiva contra esse governo fascista, mas precisamos da população mais articulada. A campanha de 2018 teve como resultado várias mulheres pretas sendo eleitas, indo para o front, sucumbindo ao medo que eles tentaram instalar ao executarem a Marielle, mas transformamos a imagem dela num símbolo de resistência e fomos para a rua. Também precisamos reconhecer as nossas vitórias, senão fica parecendo que só perdemos.

Edição: Mariana Pitasse