Rio Grande do Sul

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Que fazer ‘em tempos de cólera’

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É hora de pensar e propor um novo modelo de sociedade no campo econômico, social, ambiental, cultural - Reprodução
Esta pode ser uma oportunidade histórica, uma nova chance para a humanidade

Os tempos são de cólera, seja pelo coronavírus, seja pelo ódio e intolerância reinantes. Os tempos são de dor, sofrimento, morte.

São tempos também de solidariedade e vida por todos os lados, esquinas, ruas, comunidades e periferias. A pergunta e o desafio: que fazer, quais as tarefas na presente conjuntura? Esta pode ser uma oportunidade histórica, uma nova chance para a humanidade.

1. Em primeiro lugar, é preciso estar junto do povo, inclusive fisicamente, dentro do possível e com os devidos cuidados, promovendo o diálogo, e com ações de apoio, ajuda, assistência. “A fome tem pressa”, dizia Betinho, a fome não pode esperar. O Movimento SUS nas Ruas é um exemplo. Educadoras e educadores populares da Saúde estão se mobilizando em todo país, nos princípios da educação popular freireana, com ações concretas na área da Saúde. É o caso também do Comitê Popular em Defesa do Povo contra o Coronavírus, criado no Rio Grande do Sul, com centenas de organizações e entidades, voluntárias e voluntários participantes, com a Semana da Solidariedade com Direitos em curso, assim como as iniciativas do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA-RS). Há muitas outras iniciativas solidárias e coletivas brotando do chão da vida, da solidariedade, do cuidado com a Casa Comum, com a fraternidade que se exige em tempos de pandemia e de crise econômica e social.

2. Coloca-se a oportunidade, e a necessidade, de criar/articular grupos na base popular, que vão além do assistencialismo e das cestas básicas. As milhares de famílias atendidas são a possibilidade de se criar uma rede popular que vai além do período da pandemia e da crise, estendendo-se no futuro.

3. É hora de, junto com as ações contra a fome e a miséria, proporcionar processos de formação e conscientização das famílias e pessoas atendidas. A pedagogia libertadora e conscientizadora de Paulo Freire ganha um espaço privilegiado, seja na busca coletiva de soluções e alternativas de sobrevivência, seja no exercício da cidadania e na consciência de direitos, especialmente dos mais pobres entre os pobres, daqueles que nunca tiveram oportunidade na vida.

4. O capitalismo está sendo desnudado em sua essência nesta crise, quando alguns opõem Saúde e economia, quando se diz que a economia está em primeiro lugar, e depois a saúde e a vida. O mercado não salva a vida das pessoas, mas sim a solidariedade. A brutal desigualdade econômica e social está sendo, mais uma vez, desnudada no Brasil. Abre-se o espaço de denunciá-la e, especialmente, exigir seu enfrentamento com, por exemplo, a taxação das grandes fortunas, entre outras medidas e propostas.

5. A pandemia coloca em evidência o papel do Estado, desde que comprometido com as necessidades da população. O Estado deve estar a serviço do povo, de sua saúde, de seus direitos, e não para preservar a renda, a riqueza e o poder de alguns poucos privilegiados.

6. Políticas públicas, como as do SUS, são fundamentais neste momento, com participação popular. Nos inícios do Fome Zero, Frei Betto propôs o MESA – Ministério de Segurança Alimentar, o COPO – Comitê Operativo do Fome Zero, o PRATO – Programa Todos pela Fome Zero, o SAL – Agentes de Segurança Alimentar, e o TALHER – instrumento para ajudar a comer, e o correspondente a oficinas de formação em castelhano, de onde surgiu uma extensa rede de educadores e educadoras populares por todo Brasil, organizados na Rede de Educação Cidadã (RECID). O sentido político era ‘matar a fome de pão, saciar a sede de beleza’. É preciso exigir políticas públicas de enfrentamento à fome, à miséria, ao desemprego e no enfrentamento da pandemia do coronavírus, com recursos públicos suficientes e com ampla participação social e popular.

7. A participação popular está se revelando mais do que necessária no combate à pandemia, bem como no enfrentamento da crise econômica e social já vigente, e que vai se aprofundar muito no próximo período. Sem povo organizado e lutando por direitos e democracia, não haverá mudanças e não haverá saída para a crise.

8. Cresce o espaço da ação política, da cidadania, dos direitos. Mas sempre articulada com a organização local, de base, do (re)encontro com a própria família e com os vizinhos, com os membros das comunidades. E com a ativação, reativação, ação articulada e em rede, de movimentos sociais e populares, de ONGs, de pastorais sociais, de diferentes instituições e entidades, num grande movimento nacional, a partir da base, de baixo para cima. O povo organizado, baseado na justiça, na igualdade e na solidariedade, constrói o Brasil Popular.

9. As questões políticas como o Fora Bolsonaro, os processos eleitorais, articuladas com as demais questões, não estão fora do horizonte. Podem e devem ajudar a mobilizar a sociedade, no sentido de abrir um novo momento político. É momento e oportunidade de desmascarar os adversários da vida e os genocidas, os aliados do mercado livre e absoluto, os defensores da desigualdade, os mercadores da morte, os inimigos da democracia. Mas não podem fazer esquecer, ou substituir, a urgência da fome, do desemprego, da doença e da morte batendo na porta de milhões de brasileiras e brasileiros.

10. É hora de pensar e propor um novo modelo de sociedade no campo econômico, social, ambiental, cultural. Em vez de crescimento econômico sem parar, uma sociedade baseada no decrescimento, por exemplo. As medidas de contenção e isolamento social de combate ao coronavírus estão ‘limpando’ ambientalmente as grandes cidades, tornando límpidas as águas dos rios, mostrando que não se vive só de carro, que a poluição e o aquecimento global podem ser enfrentados, e uma nova relação com a natureza, com a Pachamama são, não só possíveis, quanto urgentes e necessárias. O homem e a mulher novas, uma sociedade nova, muito proclamadas em décadas passadas, estão agora colocadas como urgência, mas também como possibilidade.

As tarefas são muitas, pois. Há muito o que fazer. E não há tempo a perder: diminuir a dor, o sofrimento, as mortes. Enfrentar a fome e o desemprego. A vida em primeiro lugar. Tudo o mais vem depois.

Edição: Marcelo Ferreira