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PRIVACIDADE

Opinião | Por que discutir a proteção de dados pessoais durante a pandemia?

Considerado o novo petróleo da economia global, dados pessoais representam a matéria-prima das mais lucrativas empresas

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Diante do valor de mercado das empresas que têm seus negócios baseados em dados, é inquestionável o valor que se pode extrair a partir de um vasto banco de dados - Marcello Casal jr/Agência Brasil

A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), aprovada em 2018 após ser amplamente discutida com todos os setores da sociedade e que entraria em vigor em agosto deste ano, vem sendo alvo de discussões no Congresso Nacional e de medidas provisórias do Poder Executivo para adiar o início da sua vigência. Mas neste momento de pandemia da covid-19, a LGPD se faz ainda mais necessária. E nós explicamos o porquê.

A LGPD representa um avanço significativo na garantia dos direitos constitucionais à privacidade e à liberdade de expressão no país. É uma tentativa de regular o mercado de coleta massiva e tratamento de dados pessoais, que são a matéria-prima de grandes empresas de tecnologia como Facebook e Google.

É por meio da coleta desses dados que essas empresas conseguem, por exemplo, direcionar propagandas e conteúdos para determinados perfis de usuários. Para se ter uma ideia, cerca de 97% da receita do Facebook vem desse tipo de publicidade. 

Governos também são responsáveis pela coleta e armazenamento de dados de milhares de cidadãos. Basta olhar para o imenso banco de dados de posse da Serpro e Dataprev, empresas públicas que estão na mira da privatização pelo governo Bolsonaro e operam dezenas de sistemas com dados sensíveis de toda a população brasileira.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a relevância da regulação da coleta e tratamento de dados no julgamento da Medida Provisória (MP) 954, que previa o repasse de dados por operadoras de telecomunicações ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “Ao não definir apropriadamente como e para que serão utilizados os dados coletados, a norma não oferece condições para a avaliação da sua adequação e necessidade. Desatende, assim, a garantia do devido processo legal”, disse a ministra Rosa Weber, relatora do processo.

Os principais argumentos para a manutenção da liminar que impedia o repasse dos dados são a falta de proporcionalidade na requisição dos dados ao IBGE, que solicitou centenas de milhões de dados, mas utiliza apenas uma ínfima parcela disso para pesquisas amostrais. A MP também não apresentava mecanismos técnicos ou administrativos para proteger os dados pessoais de acessos não autorizados, vazamentos acidentais ou utilização indevida. Dessa forma, não satisfazia as exigências da Constituição Federal em relação à efetiva proteção de direitos fundamentais.

Neste momento de pandemia, em que muitas das soluções passam pela coleta de dados pessoais da população, a LGPD se faz ainda mais urgente para evitar abusos. Listamos cinco motivos que reforçam a importância da implementação da lei o quanto antes.

Prazo de vacatio legis de dois anos é adequado

Tendo em vista a necessidade de permitir tempo razoável para que os setores econômicos e governos pudessem se adequar à nova legislação, o prazo de entrada em vigor da LGPD foi previsto inicialmente para 18 meses após a sua sanção. Tal prazo, a pedido de setores impactados, foi prorrogado para 24 meses pela MP 869/2018. Este prazo vence em agosto deste ano. Dois anos é um tempo bastante razoável para promover adequações de governança e técnicos.

A título de comparação, o Código de Defesa do Consumidor (CDC), que à sua época representou uma mudança significativa das responsabilidades de fornecedores e comerciantes, de todos os portes, passou por vacatio legis de 180 dias.

Achar que todas as empresas e governos já devem estar adaptados antes do início da vigência da lei não faz sentido. Até hoje empresas violam os direitos do consumidor décadas após aprovado o CDC. Dois anos são uma oportunidade para adaptação, mas correções ao longo do caminho devem e serão feitas. 

Proteção de dados é fundamental 

É consenso entre organismos internacionais, como Fórum Econômico Mundial e Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, de que estamos em um momento de mudanças profundas para a consolidação de uma economia digital baseada em dados. Neste novo ambiente, a proteção de dados se torna um direito humano fundamental, pois é chave para a inserção dos indivíduos em sociedade, para evitar abusos, discriminações e até mesmo os ataques a regimes democráticos por meio da manipulação do debate público e de processos eleitorais, como vimos ocorrer no caso da Cambridge Analytica.

Segurança jurídica aos agentes de tratamento de dados

A entrada em vigor da LGPD em agosto representa uma afirmação clara sobre a necessidade de governos e empresas manterem um esforço de adaptação à legislação, de forma a assegurar os direitos dos brasileiros, e oferece parâmetros importantes para o tratamento de dados pessoais, de forma a garantir segurança jurídica a iniciativas importantes de uso dessas informações, especialmente no atual momento de pandemia. Observamos a dificuldade de o IBGE obter dados pessoais para realização de pesquisas justamente pela não adoção dos parâmetros e normas estabelecidos da LGPD, o que levou o caso para análise do STF.

Urgência na criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados

A LGPD foi estruturada por princípios e normas gerais e requer, para sua plena eficácia, uma Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) com autonomia política e técnica, e devidamente capacitada. As competências da ANPD envolvem editar normas e procedimentos sobre a proteção de dados pessoais; deliberar sobre a interpretação da lei, suas competências e casos omissos; requisitar informações, a qualquer momento, aos controladores e operadores de dados que realizem operações de tratamento de dados pessoais; comunicar às autoridades competentes as infrações penais das quais tiver conhecimento, entre outras. 

É evidente a urgência de ação do Executivo Federal para a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados. A prorrogação do início da vigência da lei nada mais é do que uma armadilha para eximir da responsabilidade um governo aparentemente descompromissado com a necessidade de controles e limites que resguardem a democracia e os direitos. 

Volume de tratamento de dados sem precedentes

Diante do valor de mercado das empresas que têm seus negócios baseados em dados, é inquestionável o valor que se pode extrair a partir de um vasto banco de dados. Diante de cifras enormes, há grande incentivo para abusos, especialmente quando o risco de ser enquadrado em infração é baixo, como na ausência da LGPD. 

Em contexto de pandemia, em que há um estado de alerta e urgência generalizados, as oportunidades para coleta massiva e abusiva aumentam, motivo pelo qual deveria haver preocupação dos defensores de direitos em garantir a rápida vigência da LGPD, e não o contrário.

*Marina Pita e Gyssele Mendes são jornalistas e coordenadoras executivas do Intervozes (Coletivo Brasil de Comunicação Social).

Edição: Mariana Pitasse