Coluna

Que os ricos paguem impostos para diminuir as desigualdades

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Trabalhadoras informais, ainda que isentas do Imposto de Renda, dedicam um percentual importante dos rendimentos com impostos - Yasuyoshi Chiba/AFP
Necessitamos de mais investimentos públicos para políticas de apoio ao cuidado das pessoas

Por Miriam Nobre*

Na última semana, o número de pessoas que morreu nos Estados Unidos em decorrência da covid-19 ultrapassou 60 mil. Donald Trump lá, assim como Jair Bolsonaro aqui, segue responsabilizando cada indivíduo pelo próprio contágio e por suas condições prévias de saúde. O fato impressionante de que ambos ainda possam se manter no poder nos indica como a ideologia do “empreendedor de si mesmo” está introjetada nas gerações atuais. É urgente retomar propostas que nos lembrem de que vivemos em sociedade, somos responsáveis uns pelos outros e essas responsabilidades devem ser compartilhadas segundo as capacidades econômicas de cada um. 

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A Campanha Taxar Fortunas para Salvar Vidas, impulsionada pelas frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo, trata exatamente disso. Ela resgata que o sistema fiscal deve ser um instrumento para reverter desigualdades, e não para aprofundá-las. O Brasil é uma sociedade profundamente desigual. Em 2019, as mulheres tiveram rendimentos médios provenientes do trabalho equivalentes a 78% dos homens. Pessoas negras, 56% das pessoas brancas. E as mulheres negras, 48% dos homens brancos. Quando consideramos as informações da Receita Federal que incluem outras fontes de renda essas disparidades aumentam ainda mais. Mas nosso atual sistema tributário faz justamente o contrário: aumenta as desigualdades.

A campanha propõe o imposto sobre grandes fortunas (como previsto na Constituição Federal de 1988), a taxação de lucros e dividendos e a atualização dos valores do Imposto Territorial Rural (ITR), entre outros. O aumento da arrecadação visa aumentar o investimento público para imediatamente assegurar uma renda básica e investir no Sistema Único de Saúde

No Brasil, os mais ricos pagam (proporcionalmente à renda) menos impostos do que os mais pobres. Entre aqueles que têm maior rendimento declarado ao Imposto de Renda, 70% dos rendimentos são isentos de tributação, como os lucros e dividendos e alguns tipos de aplicação financeira. Entre as faixas intermediárias, a isenção é da ordem de 30%. O Imposto Territorial Rural tem valores irrisórios, estimulando a manutenção de latifúndios que não produzem nada e que desmatam, como “reserva de valor” para os ricos.

As pessoas pobres, trabalhadoras informais, ainda que isentas do Imposto de Renda, dedicam um percentual importante dos rendimentos, totalmente comprometidos na compra de itens básicos, aos vários impostos sobre o consumo, como o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Portanto, o sistema tributário brasileiro é regressivo: a alíquota (valor percentual pago como imposto) diminui à medida que a renda aumenta.

Economistas feministas têm debatido como o sistema fiscal pode contribuir para reduzir as desigualdades de gênero. Necessitamos maiores investimentos públicos para realizar políticas de apoio ao cuidado das pessoas ao longo de todo ciclo vital.

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Na Europa, o sistema fiscal que financiou o chamado Estado de Bem Estar Social desconsiderou todo o trabalho doméstico e de cuidados realizado pelas mulheres nas famílias. As lutas feministas conquistaram aumento no gasto público no cuidado infantil, mas esses gastos diminuíram a partir de 2008 com as políticas de ajuste fiscal, chamadas pelas feministas de políticas austericidas.

No Brasil, os movimentos feministas, sindicais e por educação lutam por creche há pelo menos 40 anos, mas ainda estamos muito distantes da universalização. Em 2018, só um terço das crianças de 0 a 3 anos frequentavam creches. O debate público em torno dos cuidados de pessoas idosas ou com necessidade especial de atenção demonstra que as demandas são ainda maiores.

O modelo de família patriarcal resulta em que as mulheres, proporcionalmente, paguem mais impostos. Um exemplo: os modelos de isenções de impostos por despesas com dependentes vinculados a um só contribuinte fazem com que seja mais vantajoso que as isenções sejam vinculadas ao maior rendimento, que, em geral, é o dos homens. Pressupõe-se que a família decidirá harmonicamente como utilizar a devolução de imposto, o que nem sempre é o caso. Muito mais comum é que as mulheres se responsabilizem pelos gastos com os dependentes que permitiram a devolução.

Outras propostas buscam debater a regressividade dos impostos sobre o consumo. No Reino Unido, os impostos sobre roupas e comidas infantis foram retirados. Na Colômbia, o movimento feminista conquistou a retirada de impostos sobre absorventes higiênicos e copos menstruais. Em alguns países da América Latina, as alíquotas sobre estes produtos têm a mesma porcentagem de bens de luxo, mesmo que sejam itens básicos para as mulheres – por isso, eles são chamados de impostos sexistas.

Outro tema no debate da economia feminista é o dos efeitos da evasão fiscal no aumento das desigualdades de gênero e na vulnerabilidade vivida por mulheres e meninas. Estima-se que, em 2013, US$ 1,1 trilhão de dólares saiu dos países do sul em direção ao norte devido a isenções de corporações transnacionais. Essa é mais uma expressão do neocolonialismo que se apropria da natureza, do trabalho e dos conhecimentos dos países do sul global.

Em 24 de abril, iniciamos as 24 horas de Ação da Marcha Mundial das Mulheres pela Nova Caledônia, na Oceania, com o depoimento da companheira Françoise Caillard. Ela denunciou que a Vale é uma das três empresas mineradoras que exploram o níquel sem pagar impostos e já são 15 anos de exploração. Aqui no Brasil, os agrotóxicos não pagam o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e pagam menos ICMS, o que estimula a produção e o consumo de alimentos envenenados, na contramão da soberania alimentar.

A justiça tributária demanda o fim de abusos fiscais das corporações transnacionais, dos paraísos fiscais e da falta de transparência nos fluxos financeiros. Ou seja, é uma luta dentro de cada país e também em âmbito internacional. Esta é nossa resposta aos ricos que desqualificam a demanda para que paguem impostos afirmando que simplesmente vão mandar dinheiro para fora, mais do que já fazem hoje em dia. Tampouco podem justificar-se com doações que fazem propaganda de sua marca ao mesmo tempo em que utilizam do trabalho voluntário das mulheres, como fazem agora, na distribuição de cestas básicas e de materiais de limpeza neste momento de pandemia. Atualizam sua maquiagem lilás – ações chamadas de responsabilidade social que se apropriam do discurso feminista – com a instrumentalização do cuidado essencial à vida. 

Muito tem se debatido sobre não haver uma “normalidade” para a qual voltar depois da pandemia, pois esta suposta normalidade nos trouxe até aqui. Nesses debates, se questiona inclusive se é possível falar em um “depois”. A convivência com os efeitos dos desastres ambientais, econômicos e sociais do capitalismo patriarcal e racista e a construção de saídas deste sistema demandam investimentos de grande vulto que alterem a lógica da organização da vida. A taxação das grandes fortunas e dos rendimentos do capital é uma forma de começar a captar esses recursos necessários. É, além do mais, um caminho na reparação de dívidas históricas que os ricos têm com o povo, devido à apropriação da natureza, do trabalho gratuito das mulheres e da exploração do trabalho, sobretudo, do trabalho realizado pelas pessoas negras. 

*Miriam Nobre é agrônoma, integrante da equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista, da Rede Economia e Feminismo (REF) e militante da Marcha Mundial das Mulheres.

Edição: Camila Maciel