Rio de Janeiro

Vidas entregues

Conheça a história da cantora carioca que virou entregadora no período da quarentena

Relato de Sista Wolff não é caso isolado; trabalhadores se arriscam todos os dias nas ruas para garantir sobrevivência

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
O perfil do trabalhador de aplicativo é variado, mas aqueles que realmente precisam do serviço para sobreviver são, em sua maioria, “pessoas bem pobres, moradores de favelas e negros” - Divulgação

Cantora, baterista e compositora. O histórico de artista combina com o nome, Sista Wolff. Boa parte dos seus 50 anos foi dedicada à música. “Eu me apresento em casas de show, em alguns bares e também em eventos que acontecem na rua”, conta. Com o início da quarentena no Rio de Janeiro, na segunda semana de março, os estabelecimentos comerciais fecharam, as ruas ficaram vazias e as apresentações foram suspensas. “Todos os artistas que vivem de eventos estão privados do seu trabalho. Isso nos afetou bastante”.

Moradora da comunidade dos Tabajaras, na zona sul do Rio de Janeiro, a artista precisou buscar uma alternativa para sobreviver ao período. Ela se inscreveu para trabalhar em dois aplicativos de entrega, mas teve seu cadastro recusado. “Eu tentei dois aplicativos, mas eles não aceitaram. Um deles mandou mensagem dizendo que era em função da idade, mas depois apagou”, conta Sista. Desde então, a empresa envia mensagens diárias a ela informando que a documentação estaria incompleta. Para ela, isso é apenas uma desculpa e a idade foi um fator determinante para o retorno negativo: “eu não estou dentro da faixa etária do aplicativo!".

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Mesmo com o domínio dos aplicativos sobre o mercado, ela decidiu trabalhar com serviço de entrega por conta própria. “Meus clientes são, na maioria, das minhas redes sociais ou indicação de amigos”. As entregas são realizadas de bicicleta e a solicitação do serviço também é feita virtualmente. O retorno financeiro não é tão alto, mas ela garante que tem conseguido o suficiente para se manter.

A situação ficou um pouco melhor com a liberação do auxílio emergencial do governo, no valor de R$ 600. “Eu me inscrevi imediatamente, logo no primeiro dia. O meu [pagamento] já saiu e já virou aluguel”, diz Sista.


Sista Wolff é cantora e tem trabalhado como entregadora na quarentana para garantir sua sobrevivência/ Divulgação

Sem poder se manter em isolamento, como é recomendado, ela tenta manter na rua alguns cuidados básicos. “Eu lavo minhas mãos, passo álcool em gel e só ando de máscara, o tempo todo. Eu também não entro na casa das pessoas, essa foi uma regra que eu estipulei”. Apesar do receio de infecção, ela precisa continuar trabalhando. Sem carteira assinada ou qualquer outra fonte de renda, Sista se viu “obrigada a buscar uma saída para esse momento” e encontrou no serviço de entregas uma alternativa temporária.

Vidas entregues

A experiência autônoma de Sista com o serviço não é uma realidade tão comum, garante Renato Prata, diretor do documentário Vidas Entregues, disponível no Youtube. O filme, produzido no ano passado, fala sobre a rotina de trabalho dos entregadores de aplicativos. Na prática, poucas empresas dominam o mercado de delivery. O grande problema, segundo Renato, é que esses aplicativos construíram seus negócios a partir de brechas na legislação trabalhista, submetendo os entregadores a relações de trabalho extremamente precarizadas. “Não tem férias, não tem 13º, não tem folga, não tem feriado, não tem nada. As pessoas podem trabalhar de segunda a segunda. Geralmente fazem isso, porque precisam muito”, argumenta.

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Formado em história, Renato diz que já imaginava a realidade que encontraria, mas se surpreendeu durante a produção. Ele relembra um trecho do filme, no qual o entrevistado diz ter recebido apenas R$ 7 em um dia inteiro de trabalho. “Nesse dia que a gente fez a entrevista, ele deixou o telefone ligado porque a gente queria acompanhar as corridas, mas ele só recebeu uma única chamada”, conta. “A pessoa fica 10, 12 horas na rua, gasta com comida, tudo é por conta deles, então isso é realmente bem difícil de ouvir”.

O perfil do trabalhador de aplicativo é variado, mas aqueles que realmente precisam do serviço para sobreviver são, em sua maioria, “pessoas bem pobres, moradores de favelas e negros”, observa Renato. “A coisa pega para quem depende mesmo disso para sobreviver, e esses são a maioria. Os que dependem desse tipo de trabalho para sobrevivência são os mais são explorados”.

O número de pessoas trabalhando com entregas nos últimos anos cresceu bastante. Muitos têm cadastro e atendem a vários aplicativos ao mesmo tempo. “Conforme o desemprego e a miséria foram crescendo, as pessoas foram procurando esse tipo de trabalho para sobreviver”. E os aplicativos não mantiveram o valor pago anteriormente aos entregadores, “eles reduziram a taxa”. Muitos dos entregadores que conversaram com Renato durante as gravações contaram sobre essa redução.

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Recebendo cada vez menos, “os entregadores passaram a trabalhar mais horas para tentar compensar a perda e manter uma renda mínima”. Alguns chegam a pedalar entre 12 e 14 horas por dia, fazendo entregas. A bicicleta, a mochila e outros materiais do serviço são pagos pelos próprios trabalhadores, assim como a alimentação e a passagem. Caso o entregador precise parar de trabalhar por causa de uma doença, acidente ou pandemia, eles não recebem nenhum auxílio da empresa. Para Renato, “esses aplicativos fizeram a sua própria reforma trabalhista”, resume.

Fonte: Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC)

Edição: Mariana Pitasse