DESIGUALDADE

Condições precárias de moradia dificultam isolamento vertical nas periferias

Estudo mostra que casas não possuem quartos suficientes para que pessoas do grupo de risco mantenham-se isoladas

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Especialistas defendem medidas emergenciais como o uso de imóveis vazios durante a quarentena - Yasuyoshi Chiba/AFP

Assim como outros milhares de moradores da favela de Paraisópolis, localizada na zona sul de São Paulo (SP), não há como a família de Sandra Regina Cesarina escapar do aperto. São seis pessoas dividindo uma casa pequena na segunda maior comunidade da capital paulista.

Enquanto os quatro filhos dividem uma triliche em um dos cômodos, o marido de Sandra, Evaldo Silva, de 54 anos, dorme sozinho no quartinho ao lado, onde há apenas uma cama de solteiro.

Por ser hipertenso e ter a mobilidade reduzida por sequela de um Acidente Vascular Cerebral (AVC), Sandra conta que a preocupação com a saúde de seu marido se tornou ainda maior com a pandemia do coronavírus, já que Evaldo faz parte do grupo de risco.

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Desempregada e dormindo na sala por não ter outra opção, ela só sai de casa para receber cestas básicas e comprar remédios. Na volta, segue todas as orientações para não expor seus filhos e, principalmente, seu marido ao risco de contaminação. Ela sabe que, como todos estão em um espaço com poucos metros quadrados, a transmissão entre eles seria muito provável.

“Eu peço muito a Deus que essa coisa não chegue na minha casa. Que ela vá embora pra de onde ela veio. Olha, não tem nem como a gente não ficar junto aqui. É um banheiro só pra todo mundo usar. Todo mundo come junto, a gente não tem nem mesa. O medo é constante”, desabafa Sandra. 

É um banheiro só pra todo mundo usar. Todo mundo come junto, a gente não tem nem mesa. O medo é constante.

O isolamento vertical

Se a situação já é delicada enquanto todos estão em casa, imagine se o isolamento vertical, quando apenas pessoas do grupo de risco permanecem isoladas, fosse adotado. Se sair de casa voltasse a ser rotina para a família de Sandra, seria possível evitar a contaminação dentro de casa?

Levantamento geográfico feito pelo urbanista Bernardo Loureiro, publicado no Núcleo, mostra que a medida defendida pelo presidente Jair Bolsonaro seria impraticável em boa parte das regiões mais pobres do país, justamente pelas condições precárias de moradia.

Com base nos dados do Censo 2010, último monitoramento feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o estudo mapeou o percentual de domicílios com mais de dois moradores por dormitório e evidenciou um padrão de disparidade entre centro e periferia.

Em Paraisópolis, por exemplo, o percentual de famílias com mais de duas pessoas por dormitório é de 44%, enquanto no Itaim Bibi, bairro nobre da zona oeste da cidade, só 2% dos domicílios estão nessa condição. Quando se trata de mais de três pessoas por quarto, o índice de Paraisópolis chega a 19%.

Neste cenário, é praticamente impossível manter a distância necessária entre um infectado  e outras pessoas que moram no mesmo local, para evitar a transmissão.

O mesmo se repete no Rio de Janeiro. O percentual de casas com mais de duas pessoas por quarto é de 38% na favela da Rocinha. Já na Tijuca, apenas 2% dos domicílios do possuem apresentam este cenário. 

O levantamento de Loureiro também mostra, conforme registrou a CNN Brasil, que mais de 51% dos lares da favela da Maré contam com mais de duas pessoas por quarto.

É lá que Naldinho Lourenço mora com seu pai, que tem mais de 60 anos e por isso está no grupo de risco, em uma casa com apenas um quarto. Mesmo optando por dormir na sala, a preocupação com o familiar é grande em meio à pandemia da covid-19. 

“As casas na favela geralmente são pequenas, privilegiados aqueles que têm dois quartos. E mesmo assim, dependendo da quantidade de pessoas, o isolamento é difícil.  Se ele pega ou se eu pego, de que forma faz pra isolar se não tem espaço pra fazer isolamento? O certo é a pessoa ter um quarto com banheiro pra que ela possa ficar isolada em um canto, sem contato”, defende Naldinho, em consonância com as orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS).

Se ele pega ou se eu pego, de que forma faz pra isolar se não tem espaço pra fazer isolamento?

“Nunca foi essa a realidade aqui em casa. Hoje mora eu e meu pai, mas teve um momento de morarmos em 8 pessoas. Imagina se fosse nessa época, por exemplo. Impossível”, diz o comunicador popular e fotógrafo sobre impedir a transmissão do coronavírus. 

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De acordo com o Censo das Favelas, realizado pelo governo do Rio de Janeiro, na Rocinha habitam cerca de 100 mil pessoas. / Mauro Pimentel/AFP

Ainda de acordo com dados do Censo 2010, 66% dos idosos brasileiros moram com alguém que não são cônjuges, ou seja, com familiares ou outras pessoas que compartilham o domicílio. Com o isolamento vertical e uma maior circulação de pessoas, essa população ainda estaria muito suscetível à contaminação pelo coronavírus. 

Para a arquiteta e urbanista Margareth Uemura, integrante da coordenação nacional do BR Cidades, a pandemia escancara problemas relacionados à moradia que existem há décadas no Brasil. 

Trabalhadores que vivem aglomerados em cortiços e favelas não têm outra opção se não enfrentar a pandemia em condições de extrema vulnerabilidade, sem as estruturas físicas suficientes e sem o saneamento básico adequado.

Diante da crise sanitária e da demanda de medidas concretas, o BR Cidades se somou a um grupo com mais de 70 entidades da sociedade civil para elaborar um documento político contendo diretrizes necessárias para o enfrentamento da pandemia a curto e médio prazo, com foco nos habitantes de territórios populares e na população em situação de rua. 

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Uemura destaca que mesmo antes da pandemia, essas populações já estavam em risco.

“Não há condições de isolamento na forma em que essas famílias vivem. No documento, levantamos a discussão da adoção do programa de quarto de quarentena, utilizando os hotéis e outros imóveis sub-utilizados. É uma proposta imediata. É urgente mapear esses hotéis e quartos, imóveis públicos sub-utilizados, para abrigar imediatamente as famílias mas também para pensarmos uma política futura de locação social”, sugere a urbanista.

Não há condições de isolamento na forma em que essas famílias vivem.

Ela defende o fortalecimento de programas públicos de acesso à moradia digna, assim como a urbanização de favelas, além da reforma e construção de novas moradias populares.

O documento também reivindica a elaboração de planos emergenciais em nível municipal, estadual e federal, assim como a garantia de acesso a equipamentos de proteção, serviços de higiene e alimentação.

Outra demanda urgente é o auxílio financeiro às famílias de baixa renda. Também coordenadora do Instituto Pólis, Uemura afirma que a renda emergencial disponibilizada pelo governo tem se demonstrado insuficiente para as famílias brasileiras e não está com a continuidade assegurada até o fim da pandemia.

A publicação defende ainda programas destinados às diversas demandas habitacionais qualificadas no Plano Nacional de Habitação (PLANHAB) e a suspensão imediata de despejos e reintegração de posse no campo e na cidade. 


Bolsonaro posa junto da filha a apoiadores durante protesto contra Congresso e STF, em Brasília, no domingo (3) / Evaristo Sa/AFP

Política genocida

Mesmo com grande parte da população ameaçada, Jair Bolsonaro  voltou a defender o fim do isolamento social em nome da economia em ato com apoiadores no Palácio do Planalto neste domingo (3), quando o Brasil superou os 100 mil casos confirmados da covid-19.

A OMS e órgãos sanitaristas continuam a defender que a melhor maneira de reduzir a proliferação da pandemia é por meio do isolamento social. Eliane Moura, da direção nacional do Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD), reforça a necessidade do isolamento social e condena o posicionamento do presidente.

“A medida que as pessoas estiverem com gente contaminada entre seus familiares e não tiverem pra onde ir, ou com efetivamente se isolar, estamos falando de um campo de concentração aberto com a torneira do gás de extermínio ligado. É disso que estamos falando. É disso que Bolsonaro está falando. É nessa condição mais brutal e violenta que as próximas semanas se desenham para as periferias urbanas”, afirma.

Estamos falando de um campo de concentração aberto com a torneira do gás de extermínio ligado.

Assim como a proposta do BR Cidades, a ativista defende que políticos de desadensamento das comunidades periféricas já deveriam ter sido colocadas em prática há semanas. 

“A solução para que não aconteça uma matança em números inimagináveis, que é o previsto com a pandemia alastrada, é criar as condições objetivas para que exista um real isolamento horizontal, para que as pessoas que vivem em regiões muito precárias e adensadas tenham espaço para viver, para estar, para se proteger, com a renda necessária pra viver e não passar fome”, finaliza. 

De acordo com o Ministério da Saúde, 7.288 mortes foram registradas até o momento e o país ultrapassa 105 mil casos confirmados e o pico da doença no país pode demorar até dois meses para chegar.

Edição: Rodrigo Chagas