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Óscar Chávez, um monumento da canção de protesto latino-americana!

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O cantor e compositor mexicano Óscar Chávez morreu aos 85 anos por Covid-19 - Arquivo pessoal
Imagine um passeio musical por momentos tão rebeldes da história

Pare tudo o que você está fazendo! Pare tudo, porque morreu um dos mais monumentais cantores políticos da América Latina. Ouça Óscar Chávez, agora, enquanto fica em casa. Se já o conhece, renda suas homenagens a ele; se dele nunca ouviu falar, entristeça-se por não o ter conhecido em vida.

Imagine um passeio musical por momentos tão rebeldes da história como os do exílio de José Martí na Guatemala (1877-1878), da guerra civil espanhola (1936-1939), do protesto seguido de massacre estudantil no México (1968), do assassinato de Salvador Allende no Chile (1973), da revolução sandinista na Nicarágua (1979), do agente ianque infiltrado que é morto depois de descobrir que seu país financiava o narcotráfico e os paramilitares (1985) ou do levante do Exército Zapatista de Libertação Nacional-EZLN, em Chiapas (1994). De quebra, um arsenal de paródias políticas, algumas trilhas de cinema e muita música popular.

Pois então, foi possível encontrar tudo isso em uma única vida, que durou 85 anos. O cantor, músico, compositor e ator mexicano Óscar Chávez fez tudo isso e ninguém o pôde reprimir, à exceção do terrível coronavírus que, neste 30 de maio de 2020, ceifou sua vida. Um dia antes do 1º de maio para não ofuscar a memória de luta de trabalhadoras e trabalhadores em sua data.

Nestes tempos pandêmicos, talvez a música do mexicano Óscar Chávez que mais sentido faz para nós, brasileiros, é “Se vende mi país”, do disco “Par-odias neo-liberales”, de 1995. Nossos irmãos morrendo e o país sendo vendido por néscios glutões:

“Se vende su cercanía y su distancia
Se vende el horizonte de su infancia
Se venden los sueños de sus cielos
Y el último suspiro del abuelo”

Chávez lançou pelo menos oito discos de paródias políticas, a partir de 1975. “La casita” foi uma das mais conhecidas dentre elas. Em 1975, a música se referia à compra de uma mansão pelo casal presidencial dos Echeverría, fruto de corrupção:

Chávez cantou uma segunda versão, nos anos 2010, desta vez denunciando o presidente direitista Peña Nieto:

Seus alvos preferenciais sempre foram os governos (mexicanos) de direita, mas ele também cantou exaltando líderes populares e movimentos progressistas de nossa história. É o caso de José Martí que, entre 1877 e 1878, viveu seu exílio na Guatemala, fugindo da perseguição em sua terra natal, Cuba. Na verdade, o herói cubano viveu longe de seu povo, com alguns momentos de retorno, entre 1870 e 1895, em países como Espanha, México, Estados Unidos e Venezuela. No exílio guatemalteco, escreveu um poema de amor – “La niña de Guatemala” –, amor que não pôde corresponder à jovem María Josefa García Granados. Os versos narram o triste fim da linda mulher e Óscar Chávez cantou-os com muita dor, estabelecendo parceria com o revolucionário cubano cerca de cem anos depois de sua partida:

Martí é símbolo do que os cubanos chamam de primeira libertação de Cuba. Chávez gravou a canção em 1972, no disco “Latinoamérica canta Óscar Chávez” (mas a regravou no disco do “Tercer festival de la Nueva Canción Latinoamericana”, movimento do qual fez parte). Outro símbolo que Chávez entoou foi o da resistência espanhola contra o franquismo. A guerra civil se deu contra uma das expressões do fascismo na Europa, e o México viria a ser o lugar de muitos de seus exilados (lembremos, por exemplo, Adolfo Sánchez Vázquez ou Juan David García Bacca). Para este episódio de resistência, ele dedicou todo um álbum, intitulado “Canciones de la Guerra Civil y resistencia española”, de 1975:

Seguindo esta linhagem, Chávez também dedicou um álbum duplo aos acontecimentos de 1968, no México. Se fosse para destacar alguma, seria a canção “La masacre en Tlatelolco”, que narra o episódio da morte de cerca de três dezenas de estudantes covardemente atacados durante os protestos que reuniram mais de 10 mil pessoas, a 2 de outubro de 1968, na Cidade do México (na região do conjunto habitacional de Tlatelolco), contra os desmandos autoritários do governo mexicano (que, lembremos, se diz um dos poucos países onde não houve ditadura militar no período, imagine só se houvesse!). A canção faz jogo sonoro com palavras cortadas e cantadas como eco ou repetição, sendo o mais comovente desses jogos o que faz a relação entre “massa” e “massacre”:

Óscar Chávez também homenageou o presidente chileno Salvador Allende, assassinado durante o golpe militar de 11 de setembro de 1973, comandado por Pinochet. A música aparece no disco “Compañero presidente”, de 1975, ao lado das homenagens do grupo Inti-Illimani, Angel Parra, Daniel Viglietti, Alí Primera e Pablo Milanès, por exemplo:

Uma espécie de auge dessas homenagens é o disco “Nicaragua vencerá” de 1979, ano da revolução sandinista, para a qual Óscar Chávez dedica suas composições:

Dos mais interessantes discos é o “Décimas topadas”, gravado com Guillermo Velázquez, em 1986 (com Velázquez, gravou também, em 1988, o disco “El pueblo y el mal gobierno”). Nas “Décimas...”, é explícito o propósito de Chávez em resgatar expressões populares da cultura mexicana – as décimas, como forma poética, e as “topadas”, que são desafios musicados. Este álbum – que foi um dos primeiros que conheci, por tê-lo encontrado jogado num sebo – trata do “Pleito entre o dólar e o peso”, bem como do bisonho episódio conhecido como “El caso Camarena”. Na contracapa do disco, o trovador Guillermo Velázquez escreve jocosamente: 

“Gracias, en fin, al Fondo Monetario Internacional que va a distribuir entre sus deudores ‘Pleito entre el dólar y el peso’ y a John Gavin y la CIA. que nos ayudarán a vender millones de copias de ‘El caso de Camarena’ (o: ‘a otro perro con ese hueso’) por lo cual nos darán varios ‘discos de oro’”.

O caso Camarena causa espécie porque se trata de uma operação do serviço secreto estadunidense para, supostamente, desbaratar o tráfico de drogas que havia no México, país vizinho aos Estados Unidos, como se sabe. O agente norte-americano Enrique Camarena se infiltra em Guadalajara e descobre os chefes do tráfico na “Operação Rancho Búfalo” (3 mil pessoas trabalhavam no cultivo de maconha num latifúndio). No entanto, Camarena vem a ser seqüestrado, torturado e assassinado em seguida. Todos pensavam se tratar de vingança do narcotráfico, no entanto o que se soube foi que Félix Ismael Rodríguez, outro agente secreto – da CIA –, cometeu as atrocidades, porque Camarena teria descoberto que o tráfico era vinculado aos EUAAS e servia para financiar os paramilitares contrarrevolcuionários na Nicarágua sandinista. Ou seja, tudo a serviço da política neoliberal-militar de Reagan (que aparece desenhado na capa do disco de Chávez):

Para tentar dar um fechamento a este passeio político-musical, vale a pena lembrar um disco dos anos 2000, em que Chávez homenageia os zapatistas do EZLN – conhecidos no México por levantarem a bandeira do antineoliberalismo ao tomarem a cidade de San Cristóbal de las Casas, a 1º de janeiro de 1994, em Chiapas. O disco de Chávez chama-se justamente “Chiapas”:

Não bastasse tudo isso, Óscar Chávez teve clássicos românticos, com boleros e tantos outros ritmos, e ainda ficou conhecido como o “Caifán Mayor”, por sua marcante atuação no filme de Juan Ibáñez, “Los caifanes”, de 1967. O filme é um clássico do experimentalismo cinematográfico mexicano e retrata a classe trabalhadora da Cidade do México.

Dentre as interpretações com que ficou mais conhecido, por sua vez, Chávez destacou-se por cantar “Macondo”, cúmbia de Daniel Camino Díez Canseco em homenagem a Gabriel García Márquez e seu livro “Cem anos de solidão”:

“Por ti” é outra belíssima canção que fez de Chávez um cantor notório no México. Seus versos merecem atenção poética:

“Por ti,
yo dejé de pensar en el mar
por ti,
yo dejé de fijarme en el cielo 
por ti,
me ha dado por llorar como el mar,
me he puesto a sollozar como el cielo”

Eis a canção:

https://www.youtube.com/watch?v=dwaat7C451o

Por fim, me recordo que o companheiro Guilherme Daldin brincava com o som das palavras “corona” e “llorona” e cantava o clássico mexicano “La llorona” para se referir ao nosso choro em meio à pandemia do COVID-19. Pois bem, Chávez também gravou um disco todo dedicado à lenda de “la llorona” que nada mais é que o fantasma de uma mãe pranteando seus filhos mortos. Quem ouve o choro dessa mãe, sente a desgraça a lhe acometer. E são muitas as mães mortificadas que choram por seus filhos mortos as quais escutamos. Os versos da “llorona” são da lírica popular e de domínio público, por isso Chávez também criou novos versos para a música:

Assim é que um pouco dessa magnífica trajetória artística, sob o enfoque político, pôde ser destacado. O convite a ouvir Óscar Chávez está feito, já que sua imensa discografia de mais de sessenta discos é um legado quase que inesgotável. Eu mesmo tive a sorte de conhecê-la por acaso, quando em 2014 visitei o país natal desse admirável artista. Andando por entre ambulantes da Cidade do México, simpatizei com um deles e perguntei: “você tem algo de música política mexicana aí?”. O bonachão vendedor me entregou cinco CDs com toda a sua discografia e disse: “você não vai se arrepender”. Levei embora, ainda que com receio, a indicação daquele típico mexicano. E não me arrependi.

Por agora, só resta usar as palavras que o próprio Óscar Chávez escreveu para seu amigo, o cantor espanhol Luis Eduardo Aute (sobre quem também vale todo um estudo), por ocasião de seu falecimento, no último dia 4 de abril deste mesmo terrível 2020:

“Que absurdo que tu hayas muerto:
se lo pregunta la vida,
que trae la muerte escondida
en la crueldad del desierto,
que mata siempre despierto.
Quién va a escuchar tu latido,
hasta el último sonido,
de tu pintura y canción;
que harás con el corazón
de tanto amigo querido”.

Edição: Gabriel Carriconde