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Incêndio CT Flamengo

"Eles não têm o que falar"

As vítimas da tragédia e seus familiares se transformaram em números de uma planilha de gastos

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O incêndio que matou dez jovens das categorias de base do Flamengo completa um ano no dia 8 de fevereiro - Alexandre Vidal / Flamengo

Caros amigos, o diálogo reproduzido abaixo realmente aconteceu com este colunista na manhã da última quarta-feira (5) na cidade do Rio de Janeiro. Não é invenção da minha cabeça não.

- E aí, Luiz! Tudo bem, cara? O Mengão tá com tudo e não tá prosa hein? Tá comprando todo mundo!
- Mais ou menos né, irmão? O time tá esbanjando dinheiro e não acerta a situação das famílias lá da tragédia do Ninho do Urubu, cara.
- Fica tranquilo, Luiz. Isso é coisa da imprensa. Eles não têm o que falar e ficam batendo na mesma tecla.

“Eles não têm o que falar”.

Confesso que fiquei sem resposta depois dessa. E confesso que não esperava uma postura dessa vinda de um torcedor do Flamengo.

Basta acessar as redes sociais e ver os comentários em cada uma das matérias referentes à tragédia que vai completar um ano no próximo dia 8 de fevereiro. A diretoria do Flamengo já poderia ter acertado toda a situação, abraçado as famílias, construído uma espécie de memorial, trabalhado mais a prevenção de acidentes dentro do clube e muito mais. Mas não. O presidente Rodolfo Landim usou o canal do Fla no YouTube para dizer que o clube “estabeleceu um teto para as indenizações” e deixou o contato com as famílias a cargo do RH.

Nunca vi uma frieza tão grande na minha vida. As vítimas da tragédia e seus familiares se transformaram em números de uma planilha de gastos. Mas esse nem é o X da questão.

O que mais me dói é ver torcedor do Flamengo repetindo esse discurso e passando pano. Acusando a imprensa de oportunismo e até atacando quem discorda dessa postura que se assemelha bastante à da Vale nos casos de Mariana e Brumadinho. Levantando dados e casos para tentar “minimizar” aquilo que não pode ser minimizado. Tudo por conta de um clubismo barato e sem um pingo de Humanidade.

E pra completar esse cenário, ainda temos a tropa de influenciadores digitais que partiram em defesa da diretoria do Flamengo com o óbvio interesse de ganhar pontos com Landim e companhia e ganhar mais seguidores nas redes sociais. Gente que se transformou em “torcedor profissional” em troca de alguns “likes”.

“Eles não têm o que falar”. Na boa, isso é completamente nojento.

A pessoa que se presta a um papel desse precisa ter desconsiderado qualquer moral e colocar a cabeça num travesseiro pra dormir sem pesoo na consciência.

O torcedor do Flamengo que arrota que o “clube está comprando todo mundo” e protesta contra qualquer crítica sobre o tratamento dado às vítimas da tragédia e suas famílias nada mais é do que o propagador da hipocrisia da mesma diretoria que afastou o povo dos estádios e que mexeu os pauzinhos para agradar este ou aquele político para conseguir esta ou aquela vantagem. Ou concessão de estádio.

Quando foi que a gente começou a banalizar esse tipo de discurso? Quando foi que a gente começou a dar voz pra quem não soma nada no debate? Quando foi que a gente começou a achar legal passar pano em tragédia e diminuir o sofrimento alheio?

Infelizmente, esse mesmo clubismo cego e imbecil ainda está presente na cabeça e na língua de muito “torcedor”. São os mesmos que querem ditar regras quando seu time do coração é criticado e que se deliciam quando o time rival é o alvo da vez.

Não gostam de esporte. Gostam apenas de ter razão.

É bom lembrar que o rio segue correndo e vai levando tudo. Mesmo lotado de todo tipo de porcaria. A grande questão é se vamos seguir repetindo o discurso do “Eles não têm o que falar” ou se vamos acordar pra vida de uma vez.

E não. Nós não esquecemos.

Edição: Vivian Virissimo