MÍDIA

Revelações sobre caso Marielle consolidam ruptura entre Globo e Bolsonaro

Especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato analisam ataques do presidente à emissora após reportagem do Jornal Nacional

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Durante 23 minutos da live, com os ânimos visivelmente alterados, Bolsonaro ofendeu a emissora
Durante 23 minutos da live, com os ânimos visivelmente alterados, Bolsonaro ofendeu a emissora - Reprodução/TV Globo

Exaltado, Jair Bolsonaro (PSL) atacou a TV Globo na noite desta terça-feira (29), por meio de uma transmissão ao vivo em sua página no Facebook. A reação do presidente se deu em resposta à reportagem veiculada pelo Jornal Nacional sobre novas revelações que relacionam os responsáveis pelo assassinato da vereadora Marielle Franco a ele.

De acordo com a reportagem, horas antes do assassinato, em 14 março de 2018, Élcio Vieira de Queiroz, acusado pela polícia de ser o motorista do carro usado no crime, teria anunciado na portaria do Condomínio Vivendas da Barra que iria visitar Jair Bolsonaro e acabou indo até a casa do PM reformado Ronnie Lessa, acusado de ser o autor dos disparos que mataram a vereadora e seu motorista. 

O possível envolvimento de Bolsonaro poderia levar a investigação do assassinato de Marielle ao Supremo às esferas federais, e o julgamento ao Tribunal Federal (STF), pelo fato do presidente ter foro privilegiado. Na tarde desta quarta-feira (30), porém, o Ministério Público do Rio de Janeiro afirmou em coletiva de imprensa que o porteiro que citou o presidente em seu depoimento mentiu. Essa informação não constava na reportagem da TV Globo.

Conforme o JN veiculou, no dia do fato, o político estava em Brasília e não em sua casa no Rio de Janeiro. Ainda assim, durante os 23 minutos da transmissão ao vivo, com os ânimos visivelmente alterados, Bolsonaro ofendeu a emissora. 

"É uma canalhice o que vocês fazem. Uma ca-na-lhi-ce, TV Globo. Uma canalhice fazer uma matéria dessas em um horário nobre, colocando sob suspeição que eu poderia ter participado da execução da Marielle Franco, do PSOL”, disse. 

“Vocês, TV Globo, o tempo inteiro infernizam a minha vida, porra! […] Agora, Marielle Franco, querem empurrar pra cima de mim? Patifes, canalhas, não vai colar! Não devo nada a ninguém!”, continuou o presidente. "Por que, TV Globo? Por que, revista Época? Essa patifaria por parte de vocês. Deixe eu governar o Brasil. Vocês perderam."

Concessão pública

Em outro momento da transmissão ao vivo, Bolsonaro citou o processo de renovação da concessão pública da TV Globo, que vence em abril de 2023, dando a entender que estaria em seu poder renovar ou cancelar a concessão. 

"Temos uma conversa em 2022. Eu tenho que estar morto até lá. Porque o processo de renovação da concessão não vai ser perseguição, nem pra vocês, nem para TV ou rádio nenhuma, mas o processo tem que estar enxuto, tem que estar legal. Não vai ter jeitinho pra vocês nem pra ninguém", afirmou.

Porém, conforme o artigo 223 da Constituição, após análise do presidente, o Congresso pode referendar ou derrubar o ato presidencial em votação nominal de 2/5 das Casas. 

Na avaliação de Rogério Christofoletti, coordenador do Observatório da Ética Jornalística da Universidade Federal de Santa Catarina (ObjETHOS/UFSC) e professor da instituição, a postura do presidente é muito preocupante e instaura uma “guerra franca” entre o político e o grupo Globo.

“Concessões não podem ser não aprovadas porque o presidente não quer. É uma ameaça pública a uma emissora de TV, o que representa um ataque a democracia.  É muito temerário quando um presidente da República adota uma postura de não reconhecimento do jornalismo como um ator social que faz o escrutínio em nome da população para investigar as ações do governo”, afirma Christofoletti. 

O pesquisador faz a ressalva de que, analisando o histórico da TV Globo, é perceptível que a emissora atuou com o objetivo de perpetuar os mesmos grupos nas instâncias de poder do país, e agrega que a emissora deveria fiscalizar outros órgãos como o Judiciário e o Congresso Nacional da mesma forma que fez com o presidente. 

“Ela [Globo] tem que ser critica a qualquer governo. É isso que se espera de uma emissora de TV que tem uma concessão pública e contrapartidas sociais previstas na nossa lei, na Constituição”, comenta o coordenador do ObjETHOS.

Em nota publicada após os ataques de Bolsonaro, a TV Globo alegou que “não fez patifaria, nem canalhice” ao publicar a reportagem que relaciona o presidente aos responsáveis pelo assassinato de Marielle Franco.

“A Globo lamenta que o presidente revele não conhecer a missão do jornalismo de qualidade e use termos injustos para insultar aqueles que não fazem outra coisa senão informar com precisão o público brasileiro. Sobre a afirmação de que, em 2022, não perseguirá a Globo, mas só renovará a sua concessão se o processo estiver, nas palavras dele, enxuto, a Globo afirma que não poderia esperar dele outra atitude. Há 54 anos, a emissora jamais deixou de cumprir as suas obrigações”, diz o texto. 

Jogo ambíguo

Segundo Laurindo Leal Filho, jornalista e sociólogo, o tensionamento entre a TV Globo e Bolsonaro cresceu com as novas revelações. Para ele, a Globo foi em grande parte responsável pela eleição de Bolsonaro ao tratar sua candidatura e a de Fernando Haddad (PT) como se fossem equivalentes, a chamada “teoria dos dois demônios”.

No entanto, na opinião do jornalista, os primeiros meses de 2019 tornaram evidente que a Globo estaria mais confortável se um candidato do PSDB tivesse sido eleito, por conta das polêmicas e trapalhadas do governo.

Apesar dos desacordos, Leal Filho avalia que a inimizade entre a maior emissora de TV do Brasil e o governo se ameniza quando o assunto é a agenda econômica.

“Nas questões de comportamento, Bolsonaro não atendia os interesses da Globo. Atende, na verdade, os interesses econômicos. Tanto que não há nenhuma crítica à reforma da Previdência, que continua passando incólume pela emissora”, comenta o também professor da Universidade de São Paulo (USP). 

“Em relação as questões econômicas, a Globo continua blindando, não ataca Bolsonaro. Ela joga com a ambiguidade. Agora está sentindo que Bolsonaro não tem nenhum compromisso com ela e está muito mais voltado a dar apoio e reciprocidade pro SBT e a Record”, complementa.

"Acabou a mamata"

Outro ponto abordado por Bolsonaro em tom de ameaça é a decisão sobre o destino das verbas de publicidade estatal. 

“Vocês querem arrebentar com o Brasil. Estava muito bem com governos anteriores, mamavam bilhões de estatais. Acabou a teta, não tem mais dinheiro público pra vocês”, disse o presidente à TV Globo. 

Rogério Christofoletti explica, entretanto, que a Instrução Normativa nº 7 da Secretaria de Comunicação da Casa Civil da Presidência, publicada em dezembro de 2014, afirma que a distribuição da verba publicitária deve se orientar por critérios técnicos e transparentes, não políticos.

“O presidente vai usar isso como cabo de guerra mas não basta apenas que ele feche as torneiras. Esse processo não é fácil. Há contratos que foram feitos e há expectativa da população de ver públicos os atos do governo. Claro que haverá chiadeira de todas as partes. Isso não é novo. Nos Estados Unidos o Trump fez a mesma coisa. Mas lá, os freios e contrapesos têm feito com que ele recue. Aqui temos que esperar que os freios da democracia funcionem”, diz ele. 

Mobilizações populares

Já Laurindo Leal Filho não descarta que, com o desgaste da relação entre Bolsonaro e Globo, a emissora inicie uma articulação substituir de o presidente por seu vice, o general Hamilton Mourão. 

“Podemos admitir a possibilidade de uma situação semelhante a do Collor, quando a Globo entrou de cabeça no impeachment. A emissora foi responsável pelos caras pintadas, que levaram o Collor ao impeachment. Como ela tem um poder muito maior que Record e SBT, é plausível que isso venha a acontecer. Não deve se deixar de ver no horizonte da Globo impulsionar manifestações populares contra o Bolsonaro como fez contra o Collor”, finaliza o jornalista.

Edição: Rodrigo Chagas