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GESTAÇÃO

Nova resolução do CFM atinge a autonomia das mulheres durante o parto

A norma do Conselho Federal de Medicina tira das gestantes o direito à recusa terapêutica

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |

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Neste ano o Ministério da Saúde publicou um despacho em que defende abolir o uso do termo violência obstétrica de políticas públicas
Neste ano o Ministério da Saúde publicou um despacho em que defende abolir o uso do termo violência obstétrica de políticas públicas - Foto: Tânia Rêgo/ Agência Brasil

Uma resolução publicada no último dia 16 pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) no Diário Oficial da União (DOU) levantou o debate sobre a autonomia da mulher gestante durante o parto. 

No artigo quinto do documento que versa sobre o direito da paciente, destaca-se que “a recusa terapêutica manifestada por gestante deve ser analisada na perspectiva do binômio mãe/feto, podendo o ato de vontade da mãe caracterizar abuso de direito dela em relação ao feto.”

O caso foi denunciado em primeira mão pelo The Intercept Brasil. O debate sobre a medida tem mobilizado profissionais da saúde que veem a resolução como um problema, pois legitima procedimentos questionados pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Em 2018, a OMS lançou 56 recomendações sobre a hora do parto orientando que haja menos intervenção e medicação no trabalho de parto, mais tempo para a mulher dar à luz e mais participação das grávidas nas decisões.

Para Paula Inara, educadora perinatal e vice-secretária executiva da Associação de Doulas do Estado do Rio de Janeiro, a norma representa um retrocesso principalmente tendo em vista o amplo debate sobre a violência obstétrica no Brasil.

“O principal impacto será com relação a procedimentos que hoje são questionáveis porque a gente não encontra evidência científica que respalde a ampla utilização desses procedimentos, como a episiotomia [corte feito no períneo, na área genital externa da mulher, no momento do parto]. Existe corrente médica que defende até o uso do procedimento para salvar a vida da mãe e do bebê. Hoje existem vários estudos e evidência científica mostrando que não é assim, que não há respaldo do uso da episiotomia para esse fim, por exemplo. A resolução fortalece essa corrente. Então, o primeiro impacto é o retrocesso porque estávamos conseguindo avançar na luta contra a violência obstétrica”, afirma Inara.

A resolução do Conselho Federal de Medicina que tira das gestantes o direito à recusa terapêutica dando aos médicos o poder de realizar procedimentos à força desconsidera também a capacidade de decidir da gestante. Segundo a ginecologista e obstetra, Michele Pedrosa, que atua na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a medida endossa o discurso de parte da classe médica que não reconhece a violência obstétrica. 

“Estar escrito só reforça uma visão dessa mulher como alguém que é incapaz, seja por incapacidade intelectual ou emocional de tomar uma decisão em favor de si e da vida de seu filho. Há todo um discurso da classe médica, endossado pelo Ministério da Saúde, de que violência obstétrica não existe. Fora a questão de fazer procedimentos que não estão acordados, pode chegar de gritos a amarrar na mesa; frases desabonadoras desqualificando o processo; culpabilizando a mulher por alguma questão que esteja ocorrendo no trabalho de parto; falta de acolhimento; empatia; de respeito, não só a autonomia, mas a existência e a dignidade da pessoa humana, isso é sabido, mas negado por uma parcela significativa da corporação médica”, conta Pedrosa.

Neste ano o Ministério da Saúde publicou um despacho em que defende abolir o uso do termo violência obstétrica de políticas públicas e normas. Na época, por meio de nota, o órgão alegou que retirou o termo após pedido de entidades médicas. 

De acordo com o estudo “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado”, da Fundação Perseu Abramo em parceria com o Serviço Social do Comércio em 2010, a violência obstétrica era realidade para uma em cada quatro mulheres no país.
 

Edição: Vivian Virissimo