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Coluna

Novo golpe da mídia

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O caminho já se antevê. O motorista vai pagar o pato, mas o caso não vai abalar o presidente, que apenas vai ter em mente com quem se meteu
O caminho já se antevê. O motorista vai pagar o pato, mas o caso não vai abalar o presidente, que apenas vai ter em mente com quem se meteu - Foto: Tania Rego/Agência Brasil
Partidos e imprensa querem apenas lembrar quem dá as cartas

É preciso louvar quem tem competência. A mídia comercial familiar brasileira, que agora escolheu para si o sobrenome “profissional”, ajudou a conceber o golpe, foi protagonista destacada, atuou como instrumento de manipulação, resumiu o mundo à defesa de valores neoliberais e criminalizou os movimentos populares. Ajudou a fraturar a democracia e a eleger um fascista para a presidência da República, mesmo que para isso banisse de seu vocabulário político o fascismo ou mesmo a extrema direita. Fez o dever de casa.

Consumado o serviço, antes mesmo de receber seu pagamento, essa mesma mídia se viu acossada pelo mito que ajudou a eleger, que do alto do misto de ignorância e arrogância achou de entender que não deve nada a ninguém, que os tempos que correm não precisam de “intermediação”. Que, na melhor tradição populista de direita, fala diretamente com o povo. Deu uma banana para os políticos e para a imprensa. A reação não tardou. A ética da máfia é cortante e, esta sim, sem intermediação: perdoa-se tudo, menos a deslealdade à família e as dívidas tácitas.

Os partidos políticos fisiológicos, depois de um conveniente período de silêncio, já começam a colocar as asinhas de fora. Ficaram sem ministérios, mas no beija-mão diário ao comitê de transição vão deixando nas entrelinhas sua mensagem: ruim com eles, pior sem eles. A estratégia da negociação por bancadas em vez de siglas não garante voto no plenário. A pressão popular, se houver, no início do mandato terá muito tempo para ser absorvida até novas eleições. Para mostrar que o jogo não está jogado, soltam pequenas pautas-bomba para marcar território.

A imprensa também começa a reagir depois da lua-de-mel com o presidente eleito. Em matéria de jornalismo, lua-de-mel não significa apoio, mas leniência, boa vontade, amnésia seletiva. Foi o que Bolsonaro ganhou dos autoproclamados profissionais. Seus ataques à democracia foram relevados como bizarrices morais em nome de valores mais importantes no campo econômico. Engoliu-se o medievalismo de costumes em favor da pauta financeira. A teocracia conservadora foi tolerada para calçar a tecnocracia ultraliberal. De um lado Salém, de outro Chicago.

No entanto, o capitão não parece ter entendido as regras e soltou os cachorros contra a mídia, inclusive com ameaças explícitas de cortar a publicidade oficial. Escolheu alguns veículos para mandar mensagens para todos. Como no caso dos políticos preteridos pela jactância de quem julga perorar diretamente ao coração do povo, a reação das empresas de comunicação não demorou. A sabedoria da mídia foi não contestar o presidente, mas atacá-lo no terreno em que construiu seu templo de Salomão: a corrupção. O caso do motorista-militar-laranja do filho de Bolsonaro era tudo que precisava.

Há muitos elementos gravíssimos para contestar o presidente eleito, muitos deles de impacto tão severo que começam a repercutir internacionalmente antes mesmo da posse. A sequência de declarações estúpidas em política externa, direitos humanos, educação, saúde e trabalho seriam suficientes para descreditar o futuro governo Bolsonaro. O risco à democracia é real. A ameaça de fascismo é patente. O militarismo deixou de ser uma sombra para se afigurar uma promessa.  A violência já apresenta suas armas na morte de trabalhadores sem-terra.

Em várias frentes há um acúmulo de prejuízos profundos, seja em termos econômicos, com a ameaça de rompimento de acordos e tratados, seja em valores de civilização, como direitos das mulheres, dos negros e das minorias. Ao relegar a política pública indigenista a uma pastora obscurantista, o governo recupera o passado mais torpe do setor, quando Igreja e Exército dividiam a tarefa de matar povos e culturas em favor de uma ortodoxia compósita de fé intolerante e a violência. Com a soma recente dos interesses econômicos do agronegócio e das mineradoras, o recuo civilizacional é ainda mais destrutivo.

Mas são causas que não interessam à mídia hegemônica. No limite, servem a ela. Por isso, a reação tem se dado a partir do caso revelado pelas movimentações financeiras do militar aposentado que guiava o carro do então deputado estadual Flávio Bolsonaro. Agente cobrador de pedágio de nomeados para cargos de confiança do gabinete, que alimentava, entre outras contas, a da mulher do presidente eleito, Fabrício Queiroz se tornou a bola da vez. É um caso simples de extorsão, com todos os dados registrados por uma repartição pública. Com sua expertise em tratar de casos de corrupção, a imprensa mostra suas garras, com seu estilo peculiar.

O caminho esperado já se antevê. O motorista, que tomou chá de sumiço, vai pagar o pato. No máximo o “garoto” vai receber uma reprimenda, mas o caso não vai chegar a abalar o presidente, que apenas vai ter em mente a partir de agora com quem se meteu.  Alguns colunistas sempre dóceis ao que de pior o capitão reformado manifestou em sua trajetória, que a tudo relevaram em nome do respeito devido às instituições (o que nunca fizeram quando os nomes eram de outro partido), se sentem livres para cobranças de araque. Fingem indignação e alfinetam o presidente em editoriais. Chegam a cobrar de Moro, agora ministro da Justiça e titular das ações do Coaf, de onde vazou a lambança, uma atitude republicana e juridicamente equilibrada. De quem? De Moro?

O mais grave, no entanto, é que a pauta da corrupção parece ser a única capaz de mobilizar minimamente as pessoas. Até mesmo a oposição e os movimentos populares. Depois de um recuo inexplicável, de uma atitude de letargia que impediu a manifestação firme de repúdio a atitudes graves, como a extinção de ministérios ligados a direitos e ataque a acordos celebrados depois de anos de trabalho diplomático, entre outros, as forças populares ainda não assumiram a linha de frente de combate e resistência. Há uma atmosfera de preservação, quase de temor e luta pela sobrevivência, que precisa ser revertida em nome de ações mais firmes.

Pegar carona nos interesses moralistas da imprensa – ainda que se trate de uma bandalheira condenável – como se fosse o foco prioritário da política brasileira, é vitaminar o estilo achacador que fez história na imprensa brasileira. É preciso dar a medida exata às coisas. É a democracia brasileira que está em jogo, não o clã do presidente eleito. A imprensa faz seu jogo de sobrevivência, aproveita para recuperar parte da credibilidade perdida e dá indicação de até onde pode ir. Não vai cruzar a linha. Golpistas são sempre golpistas. No fim das contas, partidos fisiológicos e imprensa monopolista querem apenas lembrar quem dá as cartas.

Edição: Joana Tavares