GUERRA

"Quanto menos armas, menos violência", diz coronel da PM

Secretário de Defesa Social de Aracaju rechaça proposta de Bolsonaro de liberar o porte de armas de fogo

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Homicídios no Brasil superam o número médio de mortes na Guerra Civil da Síria, destaca coronel da reserva
Homicídios no Brasil superam o número médio de mortes na Guerra Civil da Síria, destaca coronel da reserva - Arquivo Pessoal

Armar o chamado "cidadão de bem" como resposta à violência significa abrir brechas para um genocídio no país, na opinião do coronel da reserva da Polícia Militar (PM) Luís Fernando Silveira de Almeida. A liberação de compra e posse de armas para a população é proposta pelo presidenciável de extrema-direita Jair Bolsonaro (PSL) como principal medida para reduzir a criminalidade no país. 

Em entrevista ao Brasil de Fato, o coronel, que também é secretário municipal de Defesa Social em Aracaju (SE), destaca que a equação "mais armas, menos violência" é o argumento mais falacioso que já ouviu a respeito do assunto. Em artigo de sua autoria, "O cidadão de bem e a bala perdida", o coronel argumenta que interesses políticos e comerciais norteiam a falácia de que armar as pessoas diminuirá o número de mortes.

"O discurso em defesa da 'tese' é de que haverá treinamento, teste psicológico, para que as pessoas estejam aptas a andar armadas. Ora, se treinamento e teste psicológico garantissem o uso correto das armas, não teríamos policiais mortos e policiais presos, como temos", avalia o coronel e secretário municipal.

Luís Fernando afirma que "os erros com armas de fogo não são os mesmos cometidos nas provas de matemática", porque são fatais, e a "corda" sempre arrebenta para o lado dos pobres, pretos e periféricos.

"No ano passado, o Brasil registrou 59.103 mortes por crimes violentos letais e intencionais (CVLI). Na guerra da Síria, de 2017 a maio deste ano, portanto cinco meses a mais, morreram 43 mil pessoas. Estamos em guerra", alerta.

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato -- Como você construiu sua carreira na Polícia?

Luís Fernando -- Eu era oficial temporário do Exército, aquele R/2 que serve algum tempo. Servi em Juiz de Fora (MG) no Quarto Grupo de Artilharia de Campanha. Terminado o tempo, em 1989, eu vim para a Polícia Militar (PM) do estado do Sergipe e fiz minha carreira de aspirante a coronel aqui na PM. Fiz concurso para soldado e cheguei a coronel, os cursos de carreira, normalmente. Somando Exército e Polícia, são 30 anos de carreira; só na Polícia são quase 27 anos.

Quando você recebeu o convite para a Secretaria de Defesa Social?

Eu era chefe da Casa Militar do Governo do Estado na gestão Jackson Barreto, depois eu fui para a reserva, trabalhei um tempo na Fundação Renascer -- que atua com jovens em conflito com a lei -- e, no meio do ano passado, eu fui chamado pelo prefeito Edvaldo Nogueira para assumir a pasta da Defesa Social e Cidadania.

A Secretaria de Defesa Social de Aracaju compreende a Guarda Municipal, o Procon [Programa de Proteção e Defesa do Consumidor Municipal], a Defesa Civil e tem vinculação com o trânsito, que é uma superintendência que tem autonomia administrativa e financeira, mas é vinculada a nossa secretaria.

E como você enxerga essa proposta do presidenciável Jair Bolsonaro (PSL) de liberar a posse de armas para a população?

Vai virar um Velho Oeste de um bangue-bangue, não tem o menor cabimento. A gente já tem quase 60 mil mortos por ano, um índice maior do que da guerra da Síria, basicamente a população negra, jovem, periférica e do sexo masculino, apesar de morrer muita mulher também, tem aumentado o índice de mortes de mulheres negras e diminuído o de mulheres brancas.

Então, talvez, seja uma oportunidade de um genocídio dentro do país, porque somente uma mente muito iluminada para me explicar a equação "mais armas, menos violência". Isso não existe.

Como você destaca no seu artigo, a questão da arma requer treinamento e atenção redobrada. Isso funcionaria na população civil?

A questão do armamento no assalto, na coisa cotidiana de um revólver na cabeça para tomar um celular, uma joia, uma bicicleta, está sempre baseada no fator surpresa. Se você vem andando pela rua, um marginal quer te assaltar e você o encarar de longe, ele vai procurar alguém que não está prestando atenção nele. Então, se você está distraído, ele chega com a arma na cabeça e se você também estiver armado, além de perder sua arma, você pode morrer, mesmo tendo um exímio treinamento.

E, hoje em dia, essas pessoas não andam sozinhas. Você vai reagir contra uma pessoa e tem outra que pode te matar. Então, é uma estupidez pensar que armar a população vai melhorar alguma coisa. Estão colocando ideia na cabeça de jovens que acham que isso vai ser uma extensão de poder e me admiro com homens maduros que também pensam dessa forma. Eu acho um absurdo.

Para o policial que está trabalhando, vai ser mais difícil identificar e atuar sabendo que existem mais pessoas armadas na rua? Isso vai gerar mais conflitos para a Polícia?

No artigo, eu falo a respeito disso também, porque essa história de "cidadão de bem", quem é o "cidadão de bem"? Como é que você vai diferenciar? Você está na rua, tal pessoa está armada, fica nervosa, saca a arma ou se assusta com alguma coisa, saca a arma, e você não sabe se ela está agredindo ou se defendendo.

O contexto da rua é muito rápido, então para os policiais isso é um desastre. Eu me admiro com colegas que defendem isso. Arma é para a Polícia, um serviço muito bem treinado e preparado para defender a população e sua vida.

Hoje em dia, existem grandes indústrias de armas que têm interesse em ampliar esse mercado. Você acha que existe algum tipo de lobby para que a arma vire mais um bem de consumo, um bem de desejo do brasileiro?

Sobre isso, eu ficaria no achismo. Vivemos em um mundo em que a lógica é a do consumo e a arma é mais um produto de consumo, que cresce aos olhos. A quantidade de jogos comprados e de internet são quase todos com guerra, guerrilha urbana e combate, então a mente das pessoas, há muito tempo, já vem fabricada e sendo produzida para pensar violentamente.

No artigo, o senhor fala que o policial armado está sempre preocupado e atento para usar a arma no momento adequado. Essa tensão toda seria normal para o cidadão comum?

Hoje em dia, com a proliferação das armas, que já acontece de forma ilegal e em alta escala, essa tensão já existe para o policial mesmo. Às vezes existem erros grosseiros de confusão de quem está armado e quem não está e, geralmente, isso acontece nas comunidades mais carentes.

Então, a questão da tensão hoje é geral e atinge o policial, nós temos muitos casos de policiais com problemas psicológicos, estressados, é uma dívida arriscada e muito difícil. Ao invés de se investir na melhoria das condições de trabalho dos policiais, do treinamento, do salário e da própria fiscalização, se vem com essa ideia de botar mais arma no mercado. É insanidade.

O argumento de que a arma só seria usada para a defesa do patrimônio em casa, de alguma maneira inibiria o cidadão de ir para a rua com essa arma?

Nós não temos uma tradição de cumprimento das leis. Eu falo também do trânsito, que é extremamente violento, que produz mais mortes do que a guerra da Síria, e as pessoas descumprem diversas regras, dirigem embriagadas, sem habilitação, com licenciamento vencido. Não acredito que o fato de não possuir o porte vá impedi-la de sair com essa arma, ainda mais com a cidade cheia de armas.

Como esse mundo globalizado e tecnológico convive em relação as armas? Existe uma relação muito estreita entre países que têm um baixo índice de violência com leis extremamente restritivas às armas. Quer dizer, os países mais desenvolvidos, que têm menos porte de armas, são os que têm menos homicídios. Isso também indica alguma coisa?

Logicamente, essa é a equação: "quanto menos armas, menos violência, menos homicídios". Quanto mais se restringir o porte e a posse de armas, melhor. É claro que isso, de um lado do mundo, como em alguns países europeus, onde essas taxas são reduzidíssimas e a cultura é mais evoluída.

Em contrapartida, os Estados Unidos, por exemplo, que é um país que se diz de primeiro mundo, imenso, é o segundo maior país do mundo em extensão territorial, e existe uma proliferação de armas. Todo dia é uma criança matando coleguinha na escola, um maluco atirando em todo mundo. Quer dizer, é um comércio, uma fonte de lucro muito alta e também muito cara no preço social, de humanidade.

Edição: Diego Sartorato