Abuso de poder

Violência policial põe em cheque modelo de segurança público-privada no Rio

Patrulhas policiais financiadas pela Fecomércio-RJ são acusadas por assassinato de cabo da Aeronáutica impune há 5 meses

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |

Ouça o áudio:

Desde 2016, convênio entre a prefeitura e o sistema Fecomércio-RJ financia patrulhas feitas por  reservistas e policiais em horário de folga
Desde 2016, convênio entre a prefeitura e o sistema Fecomércio-RJ financia patrulhas feitas por reservistas e policiais em horário de folga - Divulgação

A morte do cabo da Aeronáutica Bruno Estrella por um policial da Operação Centro Presente e a falta de conclusões sobre o caso, ocorrido em novembro de ano passado, vem manchando a política de segurança público-privada criada no Rio de Janeiro e celebrada pelo governador do estado, Luiz Fernando Pezão, como um “modelo para o Brasil”. Neste modelo, metade dos custos com as forças de segurança são pagos pelo sistema da Federação do Comércio do Estado do Rio de Janeiro (Fecomércio-RJ).

No último dia 27 de abril, cerca de 40 pessoas realizaram uma manifestação no Centro do Rio para cobrar celeridade nas investigações do assassinato do cabo. Além da dor causada pela morte e pela ausência de respostas, os manifestantes também tiveram que suportar a intimidação provocada pela presença inusitada de quase 50 agentes da operação Centro Presente e os deboches proferidos por alguns deles. Em geral, as manifestações na região central, que recebe protestos com frequência, são acompanhadas por outras forças policiais, pertencentes aos batalhões do Centro, de Grandes Eventos ou de Choque.

“A gente quer agilidade no processo. Mas, diretamente, a nossa crítica é ao Estado, não à polícia. O Estado em si, vestido como Estado mesmo, não deu nenhum suporte à família e a justiça está andando devagar devido à situação do nosso Estado. Falido!”, esclareceu o irmão da vítima, Vitor Estrella.

Histórico do caso

Em nota divulgada no dia 27 de novembro do ano passado, quando Bruno Estrella, 25 anos, foi assassinado, o Centro Presente descreveu que agentes da operação "presenciaram uma discussão envolvendo um casal no Terminal Rodoviário Procópio Ferreira, na Central do Brasil, ao intervir na briga um dos agentes atirou contra o rapaz, que foi socorrido para o Hospital Municipal Souza Aguiar."

No mesmo dia, em entrevista ao jornal Extra, a namorada do cabo, Caroline Chambarelli, 21 anos, confirmou o desentendimento, mas reforçou que Bruno não fez nenhum movimento que representasse ameaça aos agentes. O tiro acertou o peito do cabo que faleceu antes de chegar ao hospital. De acordo com a defesa dele, os depoimentos à polícia de Caroline Chambarelli, do motorista do ônibus e as imagens registradas por câmeras confirmaram esta versão.

Um inquérito foi aberto no começo de dezembro. As investigações estão a cargo da Divisão de Homicídios da Polícia Civil do Rio de Janeiro e seguem inconclusas, de acordo com os advogados do cabo. Questionada sobre os prazos, a assessoria de imprensa do órgão não respondeu até o fechamento da reportagem. Entretanto, garantiram que o policial que efetuou o disparo foi afastado das atividades de rua. 

Os familiares também entraram com uma ação civil cobrando indenizações da Prefeitura do Rio, do Governo do Estado e do sistema Fecomércio-RJ para o filho, a mãe e os três irmãos de Bruno Estrella.

Privatização da segurança pública

A Operação Centro Presente reproduz no coração do Rio de Janeiro, desde 2016, uma parceria público-privada implantada em 2014 na Lapa e já expandida para o Méier, Lagoa Rodrigo de Freitas e Aterro do Flamengo. Essas operações mantêm patrulhas feitas por policiais militares da ativa – em seus horários de folga – e reservistas egressos das Forças Armadas. 

De acordo com a assessoria de imprensa do Governo do Estado, após celebração de convênio, a prefeitura e o sistema Fecomércio-RJ financiam, meio a meio, as operações. O repasse é feito para o executivo estadual que se encarrega da execução dos recursos. O convênio do Centro Presente, renovado em julho de 2017 e válido até junho de 2018, foi orçado em R$ 41 milhões. Como resultados positivos, o governo do Rio destaca a prisão de mais de 3,3 mil criminosos em um ano e dez meses de atuação.

Entretanto, para o professor no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF) e especialista em segurança pública, Daniel Hirata, a participação da iniciativa privada no programa traz sérios problemas, a começar pela escolha dos locais de atuação das forças policiais. 

Em entrevista à Agência Pública, em 2016, o próprio secretário de Governo do Estado à época, Paulo Melo, afirmou que a Fecomércio escolheu as áreas a serem patrulhadas. “Você sabe, como em qualquer lugar do mundo, quem financia escolhe”, disse. Paulo Melo atualmente está preso pela operação Cadeia Velha da Polícia Federal.

Outro problema é a oficialização do "bico". Parte dos policiais que se volutariam para estas operações, na prática, complementam seus salários vendendo suas folgas, o que o governo chama de “estímulo operacional”. Eles recebem R$ 150 de gratificação e R$ 38 de auxílios por 8 horas de trabalho, podendo tirar até 12 serviços por mês. Para Hirata, aí há uma dupla perversidade: os valores não são incorporados no salário e a exposição a uma jornada exaustiva que coloca todos em risco.

“Os profissionais da segurança têm escalas para que eles descansem, porque o trabalho deles comporta uma série de riscos, de um stress mental, físico, etc. Não é à toa que eles têm essas escalas diferenciadas. É porque eles precisam ter esse tempo de descanso. Quer dizer, ao invés de você reforçar a segurança pública com mais concursos, mais contratações, você dobra o trabalho dos que já estão contratados”, critica. 

Responsabilização 

De acordo com a assessoria de imprensa da Polícia Civil, as investigações e as possíveis denúncias e processos contra policiais que cometerem qualquer crime em serviço percorrem o mesmo caminho, estejam eles trabalhando para as operações do Segurança Presente ou em suas funções convencionais. 

Em casos nos quais a Justiça julga como crime a atuação de um policial em serviço, o Estado também está sujeito a ser responsabilizado e a indenizar a parte prejudicada. Não se sabe, porém, se crimes cometidos por policiais em operações como o Centro Presente poderão gerar responsabilização da iniciativa privada que a financia.

Questionada pela reportagem, o governo estadual disse não ter resposta. Já a assessoria da Fecomércio-RJ afirmou que nesse momento os assuntos ligados às operações Segurança Presente estão sendo respondidos diretamente pelo Sesc/Senac. O procedimento foi tomado desde que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) afastou, em dezembro do ano passado, o presidente da federação, Orlando Diniz, acusado de desviar R$ 10 milhões do Sistema S. Desde então, a entidade é comandada por um interventor indicado pela Confederação Nacional do Comércio (CNC). 

O Sesc/Senac Rio, por sua vez, alegou que “a assessoria de imprensa do próprio Segurança Presente, que é responsável pela operação do programa, já prestou os esclarecimentos devidos aos questionamentos”. Para o irmão do cabo, Vitor Estrella, a questão segue no ar. 

“Também é uma dúvida que a gente tem, de quem é que responde, né? Porque na nossa ação civil a gente citou todo mundo. Citamos Fecormécio, citou Estado, citou polícia, citou prefeitura, citou todo mundo. Quem vai responder? Quem tem que arcar com isso?”, indagou.

Edição: Thalles Gomes