Pernambuco

DEMOCRATIZAÇÃO

Sem terras à beira do gramado: uma história da Rádio Camponesa

Através da cobertura esportiva, rádio do MST se populariza no interior do Ceará

Recife (PE) |
Vencerlau, Calisto e Guadameire no programa “Parada Esportiva”
Vencerlau, Calisto e Guadameire no programa “Parada Esportiva” - Cáritas de Crateús

Dezenas de agricultores sem terras comandando programas de rádio, falando de cultura, saúde, educação, política e até fazendo cobertura esportiva ao vivo, à beira do gramado. Quem consegue imaginar? Se depender da imagem criada pela grande mídia sobre os sem terra, fica difícil visualizar. Mas essa rádio existe: é a Rádio Camponesa, com sede na cidade de Crateús, interior do Ceará. Falando diariamente com milhares de lares, a rádio viu seus caminhos se abrirem através do futebol.

O ano é 2011. Lideranças locais do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) receberam uma preciosa doação: equipamentos que possibilitavam o funcionamento de uma rádio. O doador – quem diria? – foi um juiz federal. Sem perder tempo, os trabalhadores montaram uma equipe para construir o estúdio, localizado no Assentamento Palmares. A primeira transmissão da Rádio Camponesa foi no dia 1º de abril daquele ano, relembrando o golpe militar de 1964 e a resistência popular, além de iniciar a jornada de lutas do “Abril Vermelho” - desta vez, ocupando também o latifúndio do ar, na frequência FM 96,7.

Foi a realização de um sonho que existia desde 1993, quando os sem terras ocuparam a área e montaram acampamento. “A ideia era antiga. Quando ocupamos, tivemos vontade de montar uma rádio poste, mas não tínhamos possibilidade”, conta Pedro Neto, militante do MST e, desde então, jornalista e locutor da Rádio Camponesa. Em parceria com o departamento de comunicação da Universidade Federal do Ceará (UFC), foi realizado um estudo de temas de interesse das 120 famílias do Assentamento Palmares, além das comunidades rurais vizinhas. E o futebol despontou como um dos temas de maior interesse.

O programa Parada Esportiva é um dos carros-chefes da rádio. De segunda a sábado, das 11h ao meio-dia, os ouvintes recebem informações atualizadas do esporte nacional, mas principalmente do futebol cearense e, claro, dos eventos esportivos na cidade de Crateús e região. “E aos domingos sempre fazemos transmissão ao vivo, normalmente do campeonato municipal, lá no estádio. Mas quando não tem jogo do campeonato, transmitimos os amistosos entre os times de comunidades rurais”, conta Pedro Neto. O desafio da cobertura ao vivo começou em torneios de futebol entre times de diferentes assentamentos do MST. “As comunidades ao redor têm campos, o pessoal joga futebol e passamos a fazer transmissões diretamente dos campos”, conta o comunicador.

Neto conta que a Rádio Camponesa tem, hoje, cabine própria no Estádio Municipal Juvenal Melo por reivindicação dos próprios jogadores. “O campeonato municipal envolve quase 100 times, dos quais uns 30% são equipes rurais. Então eles reivindicaram que a Rádio Camponesa também tivesse um espaço para transmitir”, recorda o locutor. Através do esporte, a rádio passou a ser sintonizada e buscada nos assentamentos vizinhos, que não tinham ligação com o Movimento Sem Terra. “Nossa rádio tem uma mensagem política a passar. Mas nem sempre é fácil começar o contato assim. E o futebol permitiu que fossemos entrando aos poucos nas comunidades”, diz Pedro Neto. A relação com as comunidades e equipes rurais amadureceu e hoje elas ajudam na sustentação da rádio, através de apoios culturais.

O locutor afirma que a Rádio Camponesa tem suas peculiaridades na transmissão esportiva, entre elas, não estimular o acirramento e a disputa entre as equipes. "O futebol é um esporte popular, que sempre foi jogado muito mais por amigos, pessoas em clima de confraternização. Mas há algumas décadas o capital se apropriou do futebol, transformou em mercado e competição", diz Pedro Neto. E mesmo sem um grande clube na cidade, o mercado da bola também se faz presente em Crateús. “Alguns jogadores e times querem aparecer mais que outros, na busca pela vitrine, chamar atenção de algum clube. O mercado gera essa competitividade. Mas preferimos valorizar a amizade, o clima festivo, o futebol como parte da nossa cultura”, diz o jornalista.

Entre os motivos de orgulho da equipe de esportes da Rádio Camponesa, está o fato de ter sido uma das poucas rádios comunitárias do Brasil a transmitir ao vivo uma Taça Brasil de Futsal. A tradicional competição de futebol de salão foi realizada na cidade de Crateús, no ano de 2014, com a equipe local sagrando-se campeã do torneio. No momento em que esta matéria foi escrita, as transmissões ao vivo estão focadas na Intercopa de futebol de campo, torneio envolvendo apenas equipes da zona rural da região.

Após 6 meses ocupando a frequência FM 96,7, a Camponesa passou a ser transmitida também via internet, em sua página online. No ano seguinte, 2012, a rádio ficou disponível também no aplicativo de smartphone Rádios Net através do qual a população pode escutar a rádio. Hoje a rádio comunitária alcança a zona rural de 6 municípios: Independência, Novas Russas, Novo Oriente, Tamboril, Itaporanga e, claro, Crateús, nestas duas últimas alcançando também as zonas urbanas. Na internet, de acordo com Pedro Neto, o site da Rádio Camponesa tem cerca de 27 mil ouvintes do Brasil e em mais de 30 países.

Edição: Monyse Ravenna