Corrupção

Ruas vazias, golpe legitimado: avanço e recuo da Lava Jato sob olhar da classe média

Em meio a escândalos do governo Temer, pesquisadores tentam interpretar o recuo das manifestações “contra a corrupção”

Brasil de Fato | Curitiba (PR) |
Manifestantes se reúnem em Brasília para apoiar a Lava Jato e pedir o impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff
Manifestantes se reúnem em Brasília para apoiar a Lava Jato e pedir o impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff - Valter Campanato - Agência Brasil

“Onde estão os ‘camisas amarelas’? Onde estão as panelas?”. O questionamento feito pelo sociólogo Jessé Souza, no livro A Elite do Atraso [Leya, 2017], lançado em Curitiba em novembro, expressa uma preocupação de vários intelectuais brasileiros: entender as oscilações da classe média antes e depois do golpe de 2016. Afinal, por que milhões de pessoas foram às ruas para derrubar o governo Dilma Rousseff (PT) e apoiar a operação Lava Jato, mas não se mobilizam contra a corrupção praticada pelo governo Michel Temer (PMDB)?

Uma semana após o lançamento do livro em Curitiba, a reportagem do Brasil de Fato ouviu pesquisadores de diferentes universidades e apresenta respostas que se propõem a superar o senso comum e a polarização político-ideológica dos últimos quatro anos.

Conceito

A classe média, em questão, não é definida apenas pela renda. São trabalhadores não-manuais, com mais anos de escolaridade do que a média da população, que têm como elemento comum a crença na meritocracia. Ou seja, acreditam que o enriquecimento dos indivíduos é resultado dos esforços, talentos e escolhas de cada um.

Professor de Ciência Política da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Danilo Martuscelli alerta que esse grupo não é homogêneo, e que o salário e a posição ocupada no ambiente de trabalho contribuem para que haja diferenças dentro da própria classe: “Temos várias pesquisas que indicam que parte da classe média esteve a favor do golpe, e outra parte esteve contra. Porém, um traço marcante é que quem esteve a favor recebia mais de dez salários mínimos, e uma grande parcela tinha diploma universitário”.  

Expediente tático

Isso não significa que as pessoas que apoiaram o golpe eram mais inteligentes, mas revela alguns dos interesses que estavam em jogo. “Esses setores mobilizados, que foram às ruas pela Lava Jato e contra o governo Dilma, aderiram ao que eu chamo de estatismo conservador. Eles queriam frear as políticas sociais dos governos PT, porque elas secundarizam o critério meritocrático e ameaçam a sua distinção enquanto classe”, analisa Martuscelli.

A partir dessa interpretação, o esvaziamento das ruas durante o governo Temer começa a fazer sentido: “Os objetivos foram contemplados. Além do impeachment, eles conseguiram afetar, com a Lava Jato, os suportes fundamentais da política do governo anterior: a Petrobras, a construção civil e os programas sociais”, enumera. “A corrupção não era o objetivo desses movimentos, e sim, um expediente tático, usado para desgastar governos”.

Capital financeiro

O pesquisador Peter Bratsis, professor da Universidade da Cidade de Nova Iorque, estuda o papel da corrupção política no processo de avanço do capital financeiro. O tema entrou na pauta de discussão das economias de mercado na década de 1990, com a ampliação das chamadas “agências pela transparência” – a ideia era tornar as burocracias de Estado cada vez mais afinadas aos interesses do capital internacional.

“Esse novo entendimento de corrupção se transformou no fundamento de como as sociedades capitalistas puderam estabelecer o que é normal e o que é patológico com relação à presença de autointeresses na esfera política”, afirma Bratsis, em artigo publicado na revista Historical Materialism [Materialismo Histórico], em 2014.

Segundo Martuscelli, a agenda da corrupção foi mobilizada para tornar o Estado uma presa mais fácil: “O capital financeiro passa a vender a ideia de que os países ‘atrasados’ devem fazer um exame apurado dos casos de corrupção para que possam progredir. E o remédio que eles impõem é a adesão a um liberalismo ortodoxo”. No Brasil pós-golpe, as mudanças na política econômica podem ser exemplificadas pela reforma trabalhista e da Previdência, e pela Portaria nº 1.129, que tenta dificultar o combate ao trabalho escravo.

“Percebemos que isso não acontece só no Brasil. Aconteceu na Grécia, depois na Venezuela, na Argentina. E o recado é claro: um acerto de contas com a crise de 2008, e os imperativos do ajuste fiscal”, contextualiza o professor da UFFS, que conclui: “A classe média foi às ruas em um contexto de crise, motivada pela mídia, claro, e também porque sua distinção enquanto classe começou a ser ameaçada. Mas a principal força dirigente do golpe e da Lava Jato é o capital financeiro internacional”.

Identificação

Doutor em Sociologia e professor de Ciência Política na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Armando Boito Jr. analisa a corrupção não só como um expediente tático, mas como uma demanda secundária dos movimentos que protestaram contra Dilma. Porém, assim como Martuscelli, interpreta que parte dos anseios da classe média foram satisfeitos com o golpe: “A história da corrupção não foi inventada. Existia mesmo essa demanda, mas era secundária e foi condicionada pelo interesse do imperialismo. Se houve um recuo nas ruas, é porque a principal demanda da classe média foi atingida, que era o corte nas políticas sociais. Por isso, a gente não vai ver mais aquelas manifestações multitudinárias como antes [do golpe]”.

Boito sugere que a Lava Jato e a mídia brasileira atuaram como um partido político, e que a classe média se sente identificada com figuras como o juiz de primeira instância Sérgio Moro. Esse papel ficou evidente em 16 de março de 2016, quando o magistrado divulgou grampos ilegais dos ex-presidentes Lula (PT) e Dilma (PT), e fez explodir manifestações de rua pelo Brasil: “O Moro e essa alta classe média se veem representados uns nos outros”.

Embora o objetivo de destruir as políticas sociais tenha se realizado, os movimentos pró-Lava Jato perderam força nas ruas e não parecem influenciar as intenções de voto em 2018. O ex-presidente petista, condenado em primeira instância, lidera todas as pesquisas com folga.

“A liderança do Lula nas pesquisas deve ser saudada”, analisa o professor da Unicamp. “Significa que parte da população mais pobre começa a dar as costas para aquilo que diz a mídia”. Danilo Martuscelli, da UFFS, também valoriza o resultado das pesquisas de intenção de voto para 2018, e recorre à mesma hipótese sobre o comportamento da classe média. Segundo ele, o ex-presidente simboliza, aos olhos do eleitorado, uma possibilidade de retomada das políticas sociais dos governos PT. Por isso mesmo, é objeto do ódio daqueles que veem a classe trabalhadora como ameaça e defendem a meritocracia como forma de distinção social.

Republicanismo?

Armando Boito Jr. interpreta que os próprios governos petistas deram condições para que a classe média se mobilizasse em torno da Lava Jato e do golpe. A aposta em uma concepção pública de Estado, influenciada pelo livro Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, teria sido derrubada em 2016 com a consolidação do impeachment.

O "excesso de republicanismo” de Lula e Dilma Rousseff, conforme análise do professor da Unicamp, se materializou na nomeação de juízes para o Supremo Tribunal Federal (STF) e de delegados para o comando da Polícia Federal (PF): ambos os presidentes optaram por uma suposta “autonomia” dos investigadores.

No caso da Procuradoria-Geral da República (PGR), Dilma nomeou Rodrigo Janot duas vezes para o cargo de chefia sob argumento de ele havia sido o mais votado pelos colegas. A segunda nomeação aconteceu em meio à Lava Jato, quando estava demonstrado que Janot não iria impor limites aos abusos do Ministério Público e do Judiciário.

Entre 30 e 31 de agosto de 2016, as pretensões golpistas do Congresso Nacional venceram a crença no “poder das instituições”. José Eduardo Cardozo, então ministro da Justiça, apresentou argumentos imbatíveis para mostrar que as “pedaladas fiscais” não configuravam crime de responsabilidade. Porém, não era isso que estava em jogo: o golpe parlamentar foi consolidado, com apoio da classe média e em afinidade com os interesses do capital estrangeiro.

Edição: Ednubia Ghisi