Rio de Janeiro

OBITUÁRIO

Dyrce Drach (1930–2017):“Nosso papel era evitar que presos políticos desaparecessem"

Advogada e militante dos direitos humanos, que faleceu neste sábado (23), deixou lições de igualdade e justiça

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Dyrce: "Direito insurgente é aquele que nasce do grito da rua, ou das invasões, ou dos despejos"
Dyrce: "Direito insurgente é aquele que nasce do grito da rua, ou das invasões, ou dos despejos" - Reprodução

Dyrce Drach faleceu neste sábado (23), enquanto dormia, aos 86 anos, no Rio de Janeiro. Carioca nascida em 1930, atuou como advogada na defesa de perseguidos políticos e como servidora pública ao lado de Darcy Ribeiro, Jorge Amado, entre outros.

Seja qual fosse o regime político e o tratamento do Estado em relação a quem defendia, estabelecia relação afetuosa com perseguidos políticos, trabalhadores rurais, crianças e adolescentes.

Em entrevista à Revista da OAB-RJ, em 2012, ela recordou como era ser advogada na Ditadura: “Era meio um jogo de carta marcada. A gente podia buscar as teorias dos Direitos alemão, francês, italiano... mas não adiantava, aqueles presos estavam marcados”. E acrescentou: “Os que estavam marcados para morrer morreram, e os outros seriam quase todos condenados. O nosso papel era duplo: primeiro, juridicamente tentar reduzir a pena, mas fundamentalmente cuidar para que eles não desaparecessem”.

Neste período, testemunhou inúmeras arbitrariedades, como a de que os torturadores não tinham vergonha de disfarçar mortes e violências. Certa vez, ao perguntar sobre o paradeiro de uma cliente no DOPS-SP, um policial respondeu: “Pode ficar tranquila. Essa se a gente pegar, a gente mata”.

Como defensora de direitos humanos teve diversas outras funções, como assessora da Comissão Pastoral da Terra (CPT-RJ), do Instituto Apoio Jurídico Popular (AJUP-RJ), da Associação Beneficente São Martinho (RJ) e do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDECA-RJ). Atuou ainda como advogada no escritório modelo e como integrante da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ. Recebeu as medalhas “Chico Mendes”, do Grupo Tortura Nunca Mais, e “Sobral Pinto”, da OAB-RJ. Coordenou a edição da obra “Argumentos perdidos: reflexões críticas sobre as práticas jurídicas dos centros de defesa das crianças e dos adolescentes”, publicada pela Associação Beneficente São Martinho, em 2005.

Nas redes sociais, várias pessoas comentaram e lamentaram a morte de Dyrce Drach, como a cunhada e advogada Margarida Pressburguer, o advogado Pedro Pereira e a jornalista Miriam Leitão.

Confira trechos da entrevista com Dyrce Drach, no dia 22 de maio de 2015, realizada por Luiz Otávio Ribas para compor a tese “Direito insurgente na assessoria jurídica popular” defendida na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) em 2015. A entrevista na íntegra com pode ser acessada neste link.

Conte um pouco sobre você e sua escolha pela advocacia de direitos humanos.

Dyrce Drash: Bom, nasci aqui no Rio de Janeiro, tive dois filhos, depois me separei, depois casei outra vez, tive uma filha. Casei com um colega de turma, com quem fui casada trinta e cinco anos. Com ele eu tive muita inserção na política. Ele era do partidão. Eu tinha sido do partidão, mas não era mais nada. Quando eu me formei, acho que foi 1959, nós fomos para Brasília, eu fui para o Palácio do Planalto, fui assessora de uns quatro chefes de gabinete civil. Terminei de volta aqui no Rio de Janeiro com Darcy Ribeiro, que era meu velho conhecido. Vim para cá depois que meu marido foi para Juiz de Fora (MG), como preso político, 1964 já tinha passado, ele foi preso em 1969.

Então você começou a advogar neste período?

Eu comecei a advogar para os presos políticos já em Brasília, quando meu marido foi preso. Mas trabalhava ainda para quem não tinha advogado ou quem não podia pagar. Tenho até hoje grandes amigos ex-presos políticos. Até a anistia em 1979, eu trabalhei num escritório que tinha muitos processos, chegou a ter 112 processos de presos políticos.

Quais foram as arbitrariedades do regime militar que você testemunhou?

Por exemplo, quem foi reconhecer a Aurora Maria Nascimento Furtado [militante da Ação Libertadora Nacional] no necrotério fui eu e a irmã dela. Nós vimos como ela estava violentada, não tinha o bico do seio, a cabeça na parte da testa era toda mole, uma coisa terrível. Outro caso foi da Ana Maria Nacinovic [militante da Ação Libertadora Nacional], que também foi morta. Eu mandei vários recados pra ela sair do país, que eu não sei se chegaram. Certa vez fui no DOPS de São Paulo, tentar conversar com outra cliente. Os militares me disseram: “ela está sendo interrogada, a senhora espera”. Então eu sentei e fiquei esperando. Para puxar conversa, tinha aquele cartaz de procura-se, eu comentei: “Ih, mas este cartaz aqui tá já defasado, porque eu tenho clientes aqui que já estão presos, tem outros que eu estou procurando e não sei deles”. Eu mostrei a Ana Maria Nacinovic. Então ele falou: “olha doutora, esta a senhora não precisa procurar não, porque a hora que a gente encontrar mata!”. E mataram mesmo.

Com que tipo de tarefas você se envolvia? Até onde você ia?

Eu ia até bastante longe, viu. Tinha um preso, o José Roberto Gonçalves Rezende, que eu dizia que era meu preso predileto. E ele era. Acabava que era um envolvimento emocional também, não era só profissional. O Zé Roberto era uma das pessoas mais corajosas que eu já vi na minha vida, de melhor caráter. Ele sofria muito nas prisões pelo que ele fez, ele tinha dois processos de envolvimento nos sequestros de embaixadores, ele tinha duas prisões perpétuas. O Zé Roberto não se queixava de nada, só queria saber dos outros e ele não me contava nada. Um preso que estava defronte dele, um dia me contou a seguinte história. Ele estava com uma alergia, mas ele não pedia nada, apenas exigia os direitos dele de ser atendido por um médico. Então ninguém gostava dele no quartel. Quer dizer, os milicos não gostavam. Ele estava com uma alergia e pedia médico. Pedia, pedia médico... não vinha o médico. Este outro rapaz me contou, porque o Zé Roberto jamais me contaria uma coisa destas, que entrou o Tenente com uma metralhadora, enfiou a metralhadora na barriga dele e falou “você fica quieto porque senão você não sabe o que vai te acontecer”. Ele então teria pego o cano da metralhadora, empurrado para o lado, e falado assim: “enfia esta metralhadora no ... porque se eu tivesse medo de metralhadora eu não estava aqui!”. (risos)

Depois da anistia em 1979, você continuou advogando com direitos humanos?

Olha, eu trabalhava setorialmente na Comissão Pastoral da Terra (CPT). Eu não sou religiosa, nem nada. Mas de toda forma eu tinha um trânsito muito bom com os padres. Eram, em geral, padres que tinham vindo de Uganda (África), daqui e dali, do estrangeiro. Então eu fiquei mais setorizada em Itaguaí e Paraty. Em Paraty eu trabalhei muito, nós tivemos 16 ações de usucapião, trabalhamos também com um quilombo. Como eles era quase analfabetos, chegava um cidadão lá de gravata, mostrava um papel a eles e eles saiam, entende? Uma vez mostraram uma certidão de casamento e eles saíram. Eles diziam: “não doutora, tinha uma faixa verde e amarela”.

Depois fui advogar ainda na região de Itaguaí, Volta Redonda, Nova Iguaçu. Ali era muito complicado, porque os padres eram muito ingênuos, europeus. Eles chegavam lá e compravam um lote, porque eles iam guardar aquele lote pra fazer não sei o que que eles estavam na cabeça. É claro que o lote era invadido! E eu ficava num beco sem saída. Quem que eu defendo: o padre, a Diocese ou os sem terra? Então tive muitas coisas dessas... Depois quando eu sai da pastoral fui para Associação Beneficente São Martinho. Da São Martinho eu vim pra Comissão de Direitos Humanos da OAB. Como você vê eu devo estar rica, né? (risos).

Quais eram as diferenças de trabalhar com os meninos de rua?

Eu nunca atendi um menino numa mesa. Nunca. Eu sentava num sofá todo caquético, que tinha trazido da pastoral católica, e conversava com eles. Assim eles se sentiam mais a vontade. Tinha uns fantásticos, outros péssimos. Uma vez, um chegou lá e eu falei “o que houve com você?”. “Ah, eu 'robei'”. “Mas você 'roba'?” – eu falei. “Robo, robo...”- ele respondeu e contou a seguinte estória: “Vinha saindo uma dona do mercado, não sei de onde, e eu pedi para ela um dinheiro, e aí ela disse me chamou de trombadinha. Eu fiquei com raiva, peguei a bolsa dela e saí correndo. Aí corri, corri, corri. Dobrando a esquina vi um policial. Falei pra ele assim: eu te dou metade do que está aqui se você segurar o policial que vem aí atrás de mim. Ele falou assim: só seguro se você me der tudo”. Era nessa base.

O que você considera que seja insurgência?

Insurgência? Eu fui fundadora, junto com meu marido, do Instituto Apoio Jurídico Popular (AJUP-RJ), que era um movimento insurgente. Quer dizer, naquela época, logo depois da anistia, eram chamados movimentos novos no Direito, que era a insurgência. E que eu sou inteiramente a favor. O direito insurgente é aquele que nasce do grito da rua, ou das invasões, ou dos despejos, este é mais um direito insurgente. Agora este que foi trabalhado para virar lei eu não chamaria tanto de direito insurgente.

Referências

DRACH, Dyrce (Coord). Argumentos perdidos : reflexões críticas sobre as práticas jurídicas dos centros de defesa das crianças e dos adolescentes Rio de Janeiro: São Martinho, 2005.

DRASCH, Dyrce. Memória da advocacia, Revista OABRJ, v. 28, n. 1, Ordem dos Advogados do Brasil, Rio de Janeiro, p. 429-442, jan.-jun. 2012. 

Edição: Vivian Virissimo