Rio de Janeiro

MEMÓRIA

"Matar era política de Estado na ditadura", diz advogado e ex-preso político

Aton Fon e outros oito militantes políticos escreveram um livro sobre a violência do Estado, lançado essa semana no Rio

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Advogado analisa a violência do Estado durante a ditadura e destaca as semelhanças e diferenças com o Brasil atual
Advogado analisa a violência do Estado durante a ditadura e destaca as semelhanças e diferenças com o Brasil atual - Arquivo/RRO

Escrito por nove militantes políticos da época da ditadura militar, o livro "A Repressão Militar-Policial no Brasil, o livro chamado João" foi lançado essa semana no Rio de Janeiro, 43 anos depois de ter suas primeiras linhas escritas, em 1974. O curioso subtítulo se deve ao fato de que foi elaborado às escondidas dentro dos porões da ditadura. Para manter o segredo os autores se referiam ao livro como se fosse uma pessoa, o João.

A obra denuncia a violência do Estado brasileiro durante os anos de chumbo. O Brasil de Fato conversou com o organizador do livro, o advogado Aton Fon Filho. Ele tinha 21 anos quando foi preso em 1969 e ficou 10 anos na prisão, em função da sua atuação na Ação Libertadora Nacional (ALN), organização armada comandada por Carlos Marighella. Fon falou sobre os anos de ditadura e também sobre o atual momento político do Brasil.

Brasil de Fato: O que motivou o lançamento desse livro escrito há tanto tempo? Por que agora?

Aton Fon: A gente vinha tentando publicar esse livro há muito tempo. Passaram-se 36 anos desde que saímos da cadeia, em 1979, e esse livro, de certa forma, explica um pouco o porquê da luta armada e mostra o processo de militarização dos espaços da política. Além disso, em 2015 e 2016 começa a apontar no horizonte uma situação no mínimo preocupante, com alguns elementos que faziam lembrar aquela época (da ditadura militar). Mas, a gente já vinha preparando a publicação do livro quando o golpe contra Dilma Rousseff foi consumado.

O livro já estava sendo preparado e calhou com o atual momento político, que exige maior reflexão sobre o período da ditadura militar brasileira. 

Isso. Serviu para essa reflexão, mas também não pode ser estabelecida identidade entre os dois momentos. Fato é que hoje os militares não são as pessoas que estão exercendo o poder. É outro grupo.

Você falou que o livro ajuda a entender as razões da luta armada. Todos os nove autores da obra tiveram participação efetiva na resistência armada?

Sim, como integrantes da Ação Libertadora Nacional (ALN). Também tiveram algumas pessoas que não participaram da elaboração direta do livro, mas que criaram as condições para que ele acontecesse, é o caso de alguns companheiros da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Essas foram as duas organizações da luta armada mais conhecidas. A VPR, ligada ao Carlos Lamarca, e a ALN, ao Carlos Marighella. Mas, teve a participação de companheiros de outras organizações armadas também, como Joseph Bartolo Calvert, do Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8).

Os autores do livro ficaram presos na mesma cela?

Não, a junção aconteceu em um período extenso. Na Casa de Detenção de São Paulo, em 1974, quando o livro começa a ser pensado, os presos políticos estavam todos no pavilhão 5. Lá a gente ficava em celas para duas pessoas e no corredor onde estavam os presos políticos, as celas ficavam abertas praticamento o dia todo, só eram fechadas no final da tarde. Nesse mesmo ano fomos transferidos para a penitenciária do estado de São Paulo, onde as celas eram individuais. Para sair de lá fizemos protesto e greve de fome porque ficávamos muito isolados e voltamos para a Casa de Detenção por dois ou três meses. Depois nos mandaram para o Presídio Militar Romão Gomes, em 1974, onde só tinha presos políticos, por isso a gente chamava de “presídio político”. Nesse lugar ficamos até o final, em 1979.

Quando o livro começou a ser escrito?

Em 1974, exatamente quando foi escolhido e indicado o presidente Ernesto Geisel. Ele anunciou que iria promover uma abertura lenta, gradual e segura. A gente queria saber o que aquilo representava e porque acontecia naquele momento. Também do ponto de vista da repressão, fica consolidado uma mudança no método que já era aplicada desde 1971, quando começam haver os primeiros desaparecimentos, algo que em 1974 se torna regra. A partir de 1974 não haviam mais presos políticos. Todos foram mortos. Desapareceram. Então, a gente estava preocupado com isso. Também tinha a censura nos jornais e dos artistas. De certa forma o Geisel preparou o cenário para aquela “abertura lenta, gradual e segura”.

Há alguma herança maldita da época da ditadura militar no Direito brasileiro?

A Constituição de 1988 criou um certo arcabouço jurídico que é descumprido atualmente. Li essa semana uma matéria da agência Ponte sobre um banco de imagens da Polícia Militar (PM) de São Paulo. A PM filma todas as manifestações, não apenas quando tem conflito, e vai catalogando as pessoas. As imagens mostram como essa ou aquela pessoa se portou na manifestação, que tipo de vestimenta usava, se estava com uma camiseta de algum movimento ou partido. Então, vai criando esse espírito de repressão, é a prática da vigilância permanente. Isso, em tese, eles não poderiam fazer, mas fazem. De certa forma estão violando as regras que estabelece o direito à privacidade. “Ah, mas a privacidade é em público?”. Sim. Não é por ir a um show de rock que não tenho direito à privacidade, por exemplo.

Sobre a violência do Estado, você vê alguma semelhança com os tempos atuais?

Vou falar de um caso conhecido, o desaparecimento do pedreiro Amarildo, para dar exemplo. Não foi só o Amarildo que desapareceu. Hoje desaparece muito mais gente, enquanto resultado de ação do Estado, do que desaparecia naquela época.

O desaparecimento é uma prática que foi inaugurada naquela época? Antes da ditadura esse tipo de crime praticado pelo Estado não existia?

Antes da ditadura aconteceram alguns casos, mas nunca como política de Estado. Como política de Estado, os primeiros casos que temos conhecimento aconteceram com os militantes das Ligas Camponesas e presos do golpe militar (1964) que foram soltos e depois desapareceram. Há pelo menos três ou quatro casos. E a partir de 1971 se institucionalizou essa política. Lembro muito de um trecho de um dos livros de Elio Gaspari, que trata justamente do período em que Ernesto Geisel foi indicado para ser presidente da República (1974). Nessa época o general Golbery do Couto e Silva montou um sistema de gravações de todas as conversas do presidente, como já se fazia nos Estados Unidos. Nessas gravações têm uma conversa entre Geisel e o general Vicente de Paulo Dale Coutinho, então ministro do Exército. Geisel perguntou ao Dale Coutinho como estava o combate à subversão e ele responde: “O combate à subversão melhorou. Melhorou muito quando nós começamos a matar”. Aí o presidente Geisel diz assim: “Coutinho, esse negócio de matar é uma barbaridade, mas acho que tem que ser”. Isso mostra que matar era política de Estado. Como isso era uma barbaridade tinham que esconder, aí vêm os desaparecidos.

Na política, guardadas as devidas proporções entre a ditadura e o atual momento que vivemos no Brasil, você vê alguma semelhança entre esses dois momentos?

Há algumas, porém mais do que semelhança vejo, hoje, uma decorrência daquela experiência. É preciso dizer que no final das contas eles (os ditadores) foram derrotados. Eles não foram esmagados, punidos, nem nada disso, mas foram derrotados. Tiveram que começar aquele processo de “abertura lenta, gradual e segura”. Foram para trás das cortinas. O curioso é que tiraram consequências da derrota. O fato de os militares não estarem à frente desse golpe, não quer dizer que aquele modo de fazer foi superado. Porque tem outro Estado, o dos funcionários que detém o controle da violência. Se naquela época o golpe foi comandado por quem detinha as armas, agora nessa fase, o golpe foi orquestrado por quem tem o controle sobre aqueles que detém o controle da violência. A Justiça e o Ministério Público dão as ordens e eles vão lá e fazem. Ao Poder Judiciário cabe a interpretação das leis.

Você acha que quem dá as ordens hoje no Brasil é o Judiciário?

Não só. É um complexo. Do ponto do vista ideológico o Poder Judiciário cumpre um papel essencial porque fica mais complicado identificar o autoritarismo. É autoritário por quê? Porque a autoridade judicial está prevalecendo? A questão é: a quem está ligada essa autoridade judicial. Em um momento essa autoridade pode estar contra uma presidenta eleita.

Por que é tão difícil para a sociedade duvidar da honestidade das decisões de uma autoridade judicial? Porque é difícil aceitar que há política no Judiciário e que ele também sofre as anomalias que há na sociedade, como a corrupção?

Porque tradicionalmente dizemos que é o Poder Judiciário que decide. A própria esquerda, com o descenso da luta de massas, começou a procurar o sistema judicial. Os trabalhadores, com medo de fazer greve e perder o emprego, transformaram a luta em ações judiciais. Transformamos a luta pela reforma agrária em direito à alimentação e ao trabalho. Começamos a afirmar isso como direito humano e não mais como política, não mais a partir da condição de classe. Não defendemos mais que o proletariado tem que tomar o poder e tomar as fábricas. Agora defendemos que o trabalhador tem direito ao trabalho porque assim diz a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Inclusive nesse momento da luta dizemos “nem um direito a menos”. É verdade que estão querendo tirar nossos direitos, mas não encontramos ainda uma forma de dizer que isso está ligado à nossa condição de classe. A questão é que o Direito pode ser modificado, se for modificado do que vamos nos queixar?

Edição: Vivian Virissimo