Rio de Janeiro

Legado dos Jogos

"Obras olímpicas resultaram em desperdício de dinheiro público", diz especialista

Arquiteto urbanista Humberto Kzure-Cerquera analisa legado das Olimpíadas para o Rio de Janeiro

Rio de Janeiro |
VLT na Avenida Rio Branco tem transposições inadequadas, segundo pesquisador
VLT na Avenida Rio Branco tem transposições inadequadas, segundo pesquisador - JP Engelbrecht/ Divulgação

Em 2009, quando o Rio de Janeiro foi eleito como sede dos Jogos Olímpicos de 2016, a mídia tradicional festejou. A Prefeitura do Rio anunciava o megaevento como uma “revolução” para a cidade, por causa das obras que seriam feitas. 

Para analisar o real legado que as Olimpíadas deixarão para o Rio, o Brasil de Fato entrevistou o pesquisador Humberto Kzure-Cerquera, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, mestre em Planejamento Urbano e Regional e doutor em Urbanismo. O especialista avaliou a herança das Olimpíadas em cinco aspectos: mobilidade urbana, meio-ambiente, habitação, paisagem urbana e economia.

Brasil de Fato - As principais mudanças anunciadas no que diz respeito à mobilidade são o Veículo Leve Sobre Trilhos (VLT), o BRT Transolímpico, o BRT Transoeste, a Duplicação do Elevado do Joá e o Viário da Barra. Com essas obras, os problemas de mobilidade no Rio vão ser solucionados ou, pelo menos, reduzidos?

Humberto Kzure - Uma das grandes dificuldades que têm se alastrado há tempos nas cidades brasileiras é a questão do transporte de massa eficiente, com tarifas adequadas ao salário dos trabalhadores e a qualidade da frota de veículos. No caso da cidade do Rio de Janeiro, as questões apontadas não diferem dos principais centros urbanos do país, apesar das iniciativas da Prefeitura em buscar alternativas para atender às demandas por mobilidade. No entanto, percebe-se que houve atropelos no planejamento dos sistemas de transporte do Rio, uma vez que as grandes empresas do setor têm determinado o que deve e o que não deve ser feito no espaço urbano. Neste caso, é preciso ressaltar que os principais setores econômicos que atuam, direta ou indiretamente, na metrópole fluminense - sejam da construção civil, da indústria de transformação ou das telecomunicações, por exemplo -, agem de acordo com as políticas neoliberais vigentes, que visam a lucratividade em detrimento da qualidade dos projetos, das obras e da prestação de serviços públicos. Trata-se, portanto, do chamado “planejamento estratégico”, em que as empresas definem com o poder público, e sem ampla participação popular, quais os investimentos que são mais rentáveis. Nesse tipo de planejamento, os moradores da cidade vão se tornando gradativamente reféns dos interesses dos detentores das decisões políticas e econômicas. Um dos maiores problemas na implantação do BRT Transolímpico, BRT Transoeste, Duplicação do Elevado do Joá e o Viário da Barra e o Veículo Leve Sobre Trilhos (VLT) está na própria definição dos traçados e suas articulações, além da qualidade questionável da execução das obras aos atropelos.  Era preciso um estudo criterioso da malha existente, da relação origem/destino e a relação desses novos empreendimentos com a paisagem urbana. O VLT na Avenida Rio Branco, por exemplo, descaracterizou esse boulevard, com transposições inadequadas em relação ao conjunto arquitetônico de valor histórico e cultural, e que irá exigir muito controle da segurança de trânsito para evitar acidentes. Duas opções poderiam ter sido discutidas: ou o VLT se deslocaria no centro da via, sobre um gramado que auxiliaria na drenagem de águas de chuva, ou deveria percorrer nos dois lados da avenida, garantindo paragens ao longo das calçadas existentes. E, além disso, a circulação de veículos leves estaria garantida em toda a sua extensão. O que se vê hoje é um boulevard em que as pessoas circulam de maneira absolutamente desorientada e logo logo serão desenvolvidos vários estudos acadêmicos sobre mais uma esquizofrenia urbana. Da maneira como estão dispostos esses novos eixos de mobilidade, não demorará em se observar o colapso dos novos eixos de circulação.

Brasil de Fato - Segundo a Prefeitura, as iniciativas para o meio ambiente miram na recuperação de áreas devastadas, revitalização de bacias fluviais e implantação de sistema de esgoto sanitário. Essas metas foram cumpridas?

Humberto Kzure - Infelizmente, por mais que tenha havido esforços de diferentes técnicos - da esfera pública, das universidades ou profissionais liberais, por exemplo -, a política de meio ambiente na cidade deixa muito a desejar. As iniciativas da administração pública quanto à política ambiental timidamente se voltaram apenas para a execução de parques (como o Parque Madureira) e praças municipais, e o plantio de árvores em algumas ruas e avenidas. A despeito das obras para evitar os históricos alagamentos na Praça da Bandeira e vizinhança imediata, o saneamento ambiental, principalmente em áreas periféricas, se restringiu a pequenas ampliações e/ou manutenção de redes de esgotamento sanitário e drenagem pluvial existente. A Baía de Guanabara ainda continua à míngua. Sobre isso, cabe lembrar que desde a RIO-92 foram destinados aportes financeiros significativos da comunidade internacional para sua despoluição, e os governantes desde então pouco fizeram. A Baía continua em situação de extrema penúria ambiental. Aliás, um dos principais problemas no Rio de Janeiro diz respeito aos rios urbanos que continuam poluídos com lixo e recepção de esgotos domésticos. Nessa questão ambiental, também é conveniente lembrar que um dos legados previstos dos megaeventos esportivos – a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos – era a urbanização das favelas cariocas através do Programa Morar Carioca da secretaria Municipal de Habitação e Cidadania - SMHC, em que foi prevista a finalização das obras até 2020. Lamentavelmente, esse problema que é urbanístico e ambiental não será resolvido e, portanto, não será cumprida essa meta. De modo geral, as poucas intervenções na área ambiental serviram apenas como paliativos para atender as áreas em que estão localizados os percursos e instalações olímpicas.

Brasil de Fato - Milhares de pessoas foram removidas de suas casas devido à organização do megaevento. O que foi feito por essas famílias? Que condições habitacionais as Olimpíadas deixarão para o Rio de Janeiro?

Humberto Kzure - Atualmente, as remoções de famílias de baixa renda representam um dos principais impactos causados por essa política neoliberal da qual fazem parte os megaeventos esportivos. Desde o “bota abaixo” do Prefeito Pereira Passos, no início do século XX, a Cidade do Rio de Janeiro não havia assistido a um volume tão exorbitante de remoções para atender aos interesses dos principais setores imobiliários. Neste sentido, houve um retrocesso quanto à implementação de políticas habitacionais relacionadas, por um lado, à provisão de novas moradias e, por outro, à urbanização de favelas. O caso da Vila Autódromo é exemplar. A comunidade, que vivia pacificamente há anos, sofreu impactos violentos por conta da construção das instalações olímpicas e dos empreendimentos imobiliários nessa região da Barra da Tijuca/Jacarepaguá. A quase totalidade de sua remoção, similar ao que aconteceu em outras áreas da cidade, levou os moradores a serem abrigados em habitações de interesse social executadas, normalmente, pelo Programa Minha Casa, Minha Vida. Vale ressaltar que esse programa do governo federal foi voltado mais à resolução quantitativa da questão do déficit habitacional (apenas através de números) do que à construção de moradias com mais qualidade técnica e estética. Também não se garantiu que a localização desses empreendimentos ofertasse mais serviços públicos, creches, escolas, unidades de saúde e emprego, por exemplo. Nesse sentido, poucas famílias removidas tiveram algum tipo de benefício.

Brasil de Fato - Entre as transformações previstas pelo projeto de renovação urbana do Rio estão a revitalização da Zona Portuária, as obras de drenagem para o controle de enchentes, a pavimentação de calçadas, a ampliação da acessibilidade e melhorias de iluminação pública. Essas intervenções respeitaram a identidade urbana e a memória cultural do Rio de Janeiro

Humberto Kzure - Já falei outras vezes e repito: nos projetos de urbanismo, paisagismo e de arquitetura que foram implementados desde a Copa do Mundo falta um planejamento urbano com mais cuidado na qualidade técnica e estética. Os projetos demonstram claramente certo amadorismo e acabam comprometendo a exuberante paisagem carioca. Novos viadutos e túneis foram construídos sem a devida articulação com a malha viária existente. Por outro lado, esse novo sistema viário reflete o que no passado foi denominado de “urbanismo rodoviarista”, e isso é retrocesso. O elevado da Avenida Rodrigues Alves foi derrubado para dar lugar a outro eixo viário – dessa vez subterrâneo em área de aterro. A Rodrigues Alves amplia sua oferta de faixas de veículos, acrescida lateralmente de trilhos do VLT, mas sem calçadas em um dos lados e sem árvores para conforto da população que por ali circula. Os postes de iluminação da via e da circulação de pedestre em uma das laterais, por onde circulará o VLT, ficaram muitos altos, o que faz com que haja pouca incidência de luz nos trajetos. 
Quanto à Zona Portuária, podemos afirmar que as intervenções urbanísticas também fazem parte desse planejamento estratégico neoliberal. Isso pode ser constatado nas obras de ampliação da infraestrutura para conseguir maior valorização do solo e a construção de novos edifícios corporativos (alguns inacabados e outros sem plena ocupação, que podem ser chamados de “elefantes brancos”), em detrimento da oferta de novas habitações de interesse social em áreas centrais. Ao contrário do que se esperava, os bairros aí localizados, como Santo Cristo, Gamboa e Providência, foram “acachapados”. Por outro lado, a urbanização da Praça Mauá, com os novos ícones – o MAR e o Museu do Amanhã – desconsiderou completamente a memória e a identidade do Rio de Janeiro. É preciso lembrar que o Píer Mauá representa historicamente o principal local de recepção dos numerosos negros sequestrados da África para a construção da cidade e de nossa sociedade. E essa memória foi descartada com a construção do Museu do Amanhã. Alias, esse tipo de estratégia na cidade contemporânea e global tem sido corriqueira quanto à construção de ícones que tornam a terra lucrativa e promovem a gentrificação, os seja, a expulsão dos ocupantes indesejáveis para o capital privado e a própria esfera política.

Brasil de Fato - Os investimentos públicos feitos nessas obras foram bem planejados e executados?

Humberto Kzure - Não! Talvez para as pessoas que desconhecem a boa técnica de intervenções urbanísticas, paisagísticas e arquitetônicas, essas obras tenham agradado. Afinal, eram em muitos casos áreas sombrias. Então qualquer melhoria foi bem vinda. No entanto, esses projetos e obras não seguiram o ritmo adequado que o planejamento urbano requer. Era preciso ter iniciado essa política pública muito antes dos megaeventos, como fez Barcelona, na Espanha. Infelizmente, no Brasil os projetos e as obras de grande impacto são feitos a “toque de caixa”, com improvisos e amadorismos. Não se discute nada. Nem mesmo o impacto da implantação dessas obras na vida cotidiana dos cidadãos, com transtornos que acabam por comprometer a saúde física e mental e a segurança dos moradores e visitantes da cidade. Além disso, a estética desses projetos, encomendados pelo poder público e pelas empresas envolvidas nos megaeventos, é no mínimo questionável, ou de mau gosto mesmo. Basta ver o que foi feito com a descaracterização do Maracanã ou a construção das pontes estaiadas (com cabos de aço) em várias partes da cidade. Não houve sequer concursos públicos para a escolha de projetos à altura da paisagem geográfica do Rio de Janeiro. Em resumo, um desperdício de dinheiro público com essas obras mal planejadas em nome do tal legado olímpico. Reconheço as boas intenções desses projetos, mas de boas intenções... 

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